Sob o signo de Lepanto

Hoje, dia 7 de outubro, a Igreja comemora o dia de Nossa Senhora do Rosário. A festa foi instituída há mais de 400 anos pelo Papa São Pio V, e a razão de sua comemoração traz uma mensagem muito atual para todos aqueles que têm nas armas a sua missão e sua vocação.


No ano de 1453, a cidade de Constantinopla, último bastião do Império Bizantino, caiu sob o cerco das forças do sultão otomano Mehmed II, o Conquistador. A queda da cidade deu ensejo a uma gigantesca invasão turca à região dos Bálcãs e do leste da Europa. No Mediterrâneo, as forças turcas foram ganhando cada vez mais força, até que a frota otomana tivesse dominado os mares – o que muito deveu ao almirante Hayreddin Barba-Ruiva, que consolidou o domínio turco sobre o Mediterrâneo na Batalha de Preveza, em 1538.

No entanto, o histórico de vitórias militares otomanas em terra e mar começou o seu revés muito antes da fatídica Batalha de Lepanto: no dia 7 de janeiro de 1566, o dominicano Michele Ghislieri, bispo de Mondovì, foi eleito papa, adotando o nome de Pio V. Conhecido por sua simplicidade e sua personalidade firme, Pio V governou a Igreja com uma legítima autoridade que emanava tanto de seu múnus petrino quanto de seu caráter. No próprio ano de 1566, Pio V escreveu ao rei da Espanha, Filipe II, e ao Sacro Imperador Romano Germânico, Maximiliano II, sobre a criação de uma liga militar que protegesse a Cristandade contra os turcos. Ao longo de cinco anos, os esforços de Pio V resultaram na criação da Liga Santa, uma aliança militar que contava com os Estados Papais, os reinos de Espanha, Nápoles e Sicília, as repúblicas de Veneza e Gênova, o Grão-Ducado da Toscana, os ducados de Sabóia, Parma e Urbino, além da Ordem dos Cavaleiros de São João (conhecida hoje como Ordem Soberana e Militar de Malta).

Os dias que precederam a batalha foram marcadas pela intensidade de uma importante prática de piedade cristã: o Santo Rosário. Pio V mandou realizar procissões em honra à Virgem Santíssima, e estimulou todos os fiéis cristãos a rezarem o Santo Rosário. Ele próprio empreendia horas e horas a rezá-lo nos dias que precederam a batalha. No dia 7 de outubro de 1571, um domingo, as forças cristãs organizadas, comandadas por D. João de Áustria – irmão bastardo do rei Filipe II de Espanha –, partiram na direção da imensa frota turca. Diz-se que Gianandrea Doria, almirante que comandou o flanco direito da frota cristã, carregava dentro de seu quarto no navio uma cópia da imagem da Virgem de Guadalupe. A imensa maioria dos combatentes da frota da Liga Santa era de cristãos fervorosos, e o clima geral era bastante religioso.

Antes de a frota da Liga Santa se engajar em luta contra os turcos, D. João de Áustria subiu ao convés de seu navio com traje de batalha, ajoelhou-se sobre o assoalho e, tirando um rosário de suas vestes, começou a recitá-lo. Seus homens, incontinenti, imitaram-no, e as tripulações de outros navios repetiram o gesto do almirante. Longe dali, em terra firme, no recôndito de seus aposentos, o Papa Pio V também rezava o Santo Rosário.

São Pio V em oração: o rosário e Nossa Senhora foram decisivos na batalha.

Quando a batalha começou, o vento, que estava em sentido favorável à frota turca, mudou bruscamente, insuflando as velas da esquadra cristã. Em questão de horas, uma das maiores forças navais já vistas sofreu uma retumbante derrota. O resultado da batalha o atesta inequivocamente: do lado turco, 20 mil mortos, 50 embarcações afundadas, 137 barcos capturados e 10 mil cativos libertos; do lado cristão, 7.500 mortos e apenas 17 embarcações afundadas. A Batalha de Lepanto, um dos maiores conflitos navais da história, foi um golpe fatal no domínio turco sobre o Mediterrâneo, e garantiu à Cristandade uma forte proteção contra o inimigo islâmico.

O Papa Pio V soube da vitória da Liga Santa simultaneamente à derrota dos turcos: enquanto ainda rezava o Santo Rosário, uma revelação de Nossa Senhora indicou-lhe que as forças cristãs haviam sido vitoriosas. Pio V não teve dúvidas de que a verdadeira vencedora daquele conflito não fora a Liga Santa, nem a força militar Cristandade, mas a própria Virgem Maria. Para comemorar a vitória e honrar a memória da Virgem Santíssima, Pio V instituiu a festa de Nossa Senhora da Vitória. Em 1573, o Papa Gregório XIII mudou a festa para Nossa Senhora do Rosário, que foi universalizada para toda a Igreja pelo Papa Clemente XI em 1716. Curiosamente, quatro anos antes, o Papa Pio V, que instituiu a festa, foi canonizado pela Igreja.

O Papa Leão XIII, na encíclica Supremi Apostolatus Officio (1883), recorda, com assombro e devoção, o papel central que o Santo Rosário teve na vitória obtida na Batalha de Lepanto:

A eficácia e o poder desta devoção foram também maravilhosamente exibidos no século décimo-sexto, quando a imensa força dos turcos ameaçou impor sobre quase toda a Europa o jugo da superstição e do barbarismo. Naquele tempo, o Sumo Pontífice, São Pio V, depois de invocar o sentimento de uma defesa comum dentre todos os príncipes cristãos, lutou, acima de tudo, com o maior dos zelos, para obter à Cristandade o favor da poderosíssima Mãe de Deus. Exemplo tão nobre de oferta aos Céus e à terra naqueles tempos amealhou junto de si todos os corações e mentes de sua era. E então, os fervorosos guerreiros de Cristo, preparados para sacrificar sua vida e seu sangue para a salvação de sua fé e sua terra, partiram intrepidamente contra seus inimigos perto do Golfo de Corinto, enquanto aqueles que não puderam participar formaram uma piedosa assembléia de suplicantes que oravam a Maria, e saudavam-n’A em uníssono, repetidamente, com as palavras do Rosário, implorando-A que alcancasse a vitória de seus companheiros engajados em batalha. Nossa Soberana Senhora concedeu Seu favor, pois na batalha naval próxima das ilhas Equinadas, a frota cristã obteve uma magnífica vitória, com poucas baixas, na qual o inimigo foi fragorosamente derrotado. E foi para preservar a memória desta magnífica graça que o mesmo Sacratíssimo Pontífice desejou que a festa em honra a Nossa Senhora das Vitórias fosse celebrada no aniversário de tão memorável batalha.

Navio da batalha de Lepanto em um museu.

A história de Lepanto tem muito a dizer aos homens e às mulheres que tem por missão a proteção da vida, a manutenção da ordem pública e a preservação da civilização. Essa missão não pode ser vista tão-somente como um emprego, um ganha-pão, por mais nobre e honesta que seja: ela deve ser vista como uma vocação. Por alguma razão que nos foge, Deus quis que servíssemos a Ele e ao próximo no lugar onde nos colocou, e não é possível encarar essa missão divina como vocação se não temos nossos olhos postos n’Ele.

O militar lida, mais do que outros, com os extremos da existência humana: o mal, a mentira, a discórdia e a morte. Além disso, ele arrisca a própria vida pelo próximo, chegando, não raro, a sacrificar-se para que outros possam viver. Uma vocação como esta não poderá jamais ser plenamente vivida se estiver afastada de Deus. É a proximidade com Deus que faz com que, mesmo em meio à podridão humana, o militar não perca o norte, não desfaleça nem esmoreça. É com os olhos postos no Criador, com os pés na senda do Redentor, e com o coração inflamado pelo Consolador que o militar pode seguir o seu caminho com firmeza, constância e honradez. E a maior arma que o militar pode ter para conseguir isso não é a arma de fogo, mas, nos dizeres de São Pio de Pietrelcina, a maior arma da fé: o Santo Rosário.

Felipe Melo.

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