Fechar tudo é a única saída contra o avanço do COVID-19?

Marta[1], 52 anos, trabalha há nove para a família Souza como empregada doméstica. Todos os dias ela levanta às 5h da manhã, e usa o transporte público para percorrer os quase cinquenta quilômetros que separam sua casa, em Brazlândia-DF, do Plano Piloto.[2]. Quando não está trabalhando para a família Souza, Marta auxilia seu esposo que faz entregas de hortifrúti para comerciantes de sua comunidade. Marta também complementa a renda da família com serviços de manicure. Logo que foram adotadas as primeiras medidas para contenção do avanço do Convid-19 no DF, a família Souza dispensou Marta do trabalho com o compromisso de continuar a pagar-lhe o salário. 

Nesta quinta-feira, 26/03/2020, em entrevista à equipe do Blitzdigital, Marta informou que está conseguindo se manter com o salário pago pela família Souza e com alguma reserva que possuía com o marido, mas que não sabe por quanto tempo ainda conseguirá sustentar a situação. Os maiores temores de Marta estão relacionados aos seus três netos e dois filhos. Um dos filhos de Marta, a exemplo de seu esposo, não possui renda fixa, o outro está com o emprego ameaçado.

Perguntada sobre o que achava das medidas adotadas para a contenção do avanço da epidemia de Covid-19, Marta disse que está muito confusa porque a TV diz que é preciso que as pessoas fiquem em casa, mas o Presidente da República diz que as pessoas precisam voltar ao trabalho. No final da entrevista, Marta nos perguntou: realmente tem de fechar tudo e proibir as pessoas de trabalhar?

Por incrível que pareça, Marta se encontra em uma situação bastante confortável quando comparamos sua história com a de milhões de outros brasileiros. No Brasil, quase 40 milhões de trabalhadores estão na informalidade[3]. Por trás desses números estão a senhora que vende bolo e café no ponto em que Marta toma o ônibus para o trabalho e o agricultor familiar que vende hortaliças para seu esposo. Com a interrupção abrupta do comércio, ambos estão completamente desprovidos de renda.

A senhora que vende café da manhã no ponto de ônibus e o agricultor familiar que fornece as hortaliças para o esposo de Marta vivem uma quarentena muito diferente daquela retratada nos telejornais. Eles não fazem parte da classe média, em muitos casos concursada, que tem enfrentado a crise cantando nas janelas de apartamentos em condomínios de alto padrão ou fazendo ioga em família. Em verdade, a realidade para boa parte da população é diferente. Muito diferente.

Como realizar isolamento social nas favelas ?

Vivemos em um país que possui 11,4 milhões de pessoas morando em favelas. Isso de acordo com o último censo realizado pelo IBGE (2010). Mesmo se tratando de números bastante defasados[4], não temos nenhum indicativo de que a situação habitacional da população possa ter melhorado, dados os últimos anos de recessão e crescimento pífio do PIB. Trata-se de um enorme contingente populacional habitando em condições insalubres, sem saneamento básico e muitas vezes sem acesso à água potável.

Mesmo em comunidades mais estruturadas como a Rocinha (RJ) ou o Sol Nascente (DF), há milhares de pessoas vivendo em um ou dois cômodos, em grupos de cinco, seis ou mais pessoas. Difícil imaginar que essas pessoas vão conseguir permanecer confinadas em habitações precárias, sem recursos de subsistência, até que os prefeitos e governadores digam que está tudo bem e que é hora de voltarem às suas vidas normais.

As dúvidas de Marta quanto à efetividade das medidas que estão sendo tomadas para se conter o avanço do Covid-19 também atinge a maioria maciça da população. Mesmo entre as pessoas que parecem estar convictas de que o confinamento das pessoas em casa seja a melhor solução, percebe-se tratar-se de uma opinião sustentada mais no medo do que em evidências.

Poucos dias antes da interrupção abrupta das aulas e de atividades comerciais, tivemos as multidões do carnaval, autoridades e celebridades em festas para centenas de pessoas em ambientes fechados e as manifestações de apoio ao Presidente da República. Porém, à medida que a situação no norte da Itália se agravou e as notícias das mortes em decorrência do Covid-19 foram chegando, verificou-se um verdadeiro ponto de inflexão no tratamento da questão, sobretudo na mídia e na postura de prefeitos e governadores.

Tudo em nossa volta indicava haver um consenso no sentido de que a melhor coisa a se fazer realmente era permanecermos todos passivos em casa até que a tempestade passasse. Contudo, o pronunciamento do Presidente da República, terça-feira (24), mostrou que se tratava de um consenso apenas aparente.

Logo na sequência da fala do Presidente, veio a reprimenda contundente da mídia, de partidos políticos opositores e de autoridades do Legislativo, do Judiciário e do Executivo em nível estadual e municipal. Porém, quando parecia que o Presidente estava isolado em sua posição pela retomada das atividades econômicas e tratamento peculiar dos grupos de risco, as redes sociais foram inundadas de manifestações favoráveis a uma resposta ao Covid-19 que não representasse tantas restrições ao exercício de direitos fundamentais como a livre locomoção, a liberdade de culto e a liberdade econômica.

Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia

Nesse sentido, precisamos voltar às inquietações de Marta. Afinal, quais são as medidas mais efetivas para se enfrentar a expansão do Covid-19 e se evitar o colapso do sistema de saúde, no curto prazo? Como, ao mesmo tempo, se evitar um número maior de mortes no longo prazo em decorrência dos efeitos colaterais de medidas draconianas que visam a solução da crise? Confessamos que não pretendemos e nem temos como trazer uma resposta cabal para estas perguntas. Mas não vá embora. Fique conosco. Pesquisamos o que 20 países (G20 +5) têm feito para enfrentar a crise e desejamos dividir o que encontramos com você.

O confinamento da população não tem sido a única forma de se impedir o avanço acelerado do Covid-19

            Como todos sabemos, o marco zero da pandemia mundial do Covid-19 é a China continental, mais precisamente a província de Hubei[1] . Apenas esta província chinesa entrou no que vem sendo chamado pela mídia de full lockdown (fechamento completo)[5]. Ou seja, mesmo sendo o epicentro da pandemia, a China não colocou todas as suas províncias no tipo de quarentena extrema que os cidadãos italianos têm experimentado, por exemplo.

            Um caso curioso é a postura de Japão e Coreia do Sul. Em que pese a proximidade com a China, e o fato de terem sido os primeiros a serem afetados pela epidemia, esses países adotaram outras estratégias que não o cerceamento da liberdade de ir e vir de seus cidadãos e nem as medidas draconianas observadas em outros cantos do mundo. A Coreia do Sul, pela experiência acumulado no enfrentamento de crises anteriores, investiu na testagem em massa da população e no isolamento de contagiados e de seus contatos primários. O fechamento de estabelecimentos comerciais somente se deu em regiões com maior número de casos.

            No Japão, país com o maior número de idosos no planeta, as medidas adotadas pelo governo são ainda menos invasivas. As celebrações pela chegada da primavera seguem trazendo multidões às ruas, inclusive, idosos. Desde o início da crise, o Japão acumula 1.387 infectados com 47 mortes. O perfil muito diferente de países como Itália (80.589 infectados) e Espanha (57.786 infectados), pode estar relacionado a questões culturais como a cultura do não contato físico e hábitos seculares de higiene, além do uso corriqueiro de máscaras[6]

No mesmo perfil de combate à epidemia com menor restrição à liberdade, encontra-se Singapura[7]. Em que pese contar com um terço da população de origem chinesa e possuir alto volume de movimentações de bens e pessoas de e para a China, Singapura não impôs medidas tão restritivas à sua população, tendo registrado 683 contagiados e duas mortes, em uma população de 5.612 milhões de pessoas.

Epicentro da pandemia. Atenção aos vizinhos da China: Japão, Coreia do Sul, Singapura e Indonésia.

Um pouco mais ao sul, mas ainda no extremo oriente, temos o caso da Indonésia. Populosa e com problemas graves de desenvolvimento humano, como alta desigualdade social e saneamento básico precário, a Indonésia merece maior atenção por ser um país que possui características socioeconômicas muito semelhantes ao Brasil. Mesmo diante do pânico mundial e a proximidade de seu país com o epicentro da crise, o presidente Jokowi Widodo tem assegurado a seus compatriotas que não haverá lockdown na Indonésia[8].

Já no Oriente Médio, Israel também está entre os países com enfrentamento da crise com menor restrição às liberdades individuais de seus cidadãos até o momento. Em um vídeo que rodou o mundo e tornou-se bastante popular no Brasil, o ministro da defesa israelense, Naftali Bennett, salientou que a medida mais efetiva para se evitar mortes pelo Covid-19 é a proteção dos idosos. No vídeo, Bennett esclarece que o restante da população deve seguir sua rotina normal até que uma barreira natural de imunidade seja criada e os vulneráveis da sociedade possam paulatinamente retornar ao convívio comunitário. Entretanto, com o aumento das contaminações e, principalmente das mortes, entre israelenses, o Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu anunciou medidas extremas para contenção do avanço da doença. Pela primeira vez desde a criação do Estado Israelense, sinagogas deverão ficar de portas fechadas no país[9].  Essas medidas, contudo, tendem a ser o caminho mais adotado na Europa.

Medidas extremas de enfrentamento da pandemia têm sido cada vez mais presentes na vida de cidadãos de países europeus. Depois de ultrapassarem a China no número de mortos pela atual pneumonia chinesa, italianos e espanhóis estão vivendo sob severa restrição às suas liberdades individuais. Juntamente com a Índia e regiões específicas da China, esses dois países são o que mais avançaram no uso rígido da lei para manter as pessoas em quarentena domiciliar.

Entre os extremos, ou melhor, entre os países que optaram pelo full lockdown ou por estratégias de enfrentamento sem restrição da liberdade de seus cidadãos, encontram-se 18 (dezoito) dos 25 (vinte e cinco) países alvo de nossa pesquisa (Figura 1). Porém, mesmo esta faixa intermediária de países pode ser dividida em dois estratos. No primeiro estrato, estão aqueles que optaram pela manutenção da liberdade de locomoção de seus cidadãos com restrições de algumas atividades, como as que envolvem a aglomeração de pessoas. Neste grupo estão Austrália, Holanda, México e nossa vizinha Argentina.

Figura 1 – Severidade das medidas adotadas frente ao Covid-19.

No segundo estrato intermediário, estão nações que adotaram, parcialmente ou em todo território, restrições ao direito de locomoção sem proibição legal de movimentação interna (ex. redução drástica do transporte público terrestre) e permissão apenas de atividades e serviços essenciais. Neste grupo, o Brasil está ombreado com países como Chile, Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha e a própria China. Contudo, nem toda a população parece estar disposta a arcar com os custos das medidas restritivas.

A imposição de restrição ao direito de reunião e de locomoção na França reacendeu a fúria dos Coletes Amarelos[10]. O país também tem enfrentado problemas graves com bairros de minorias que simplesmente estão se rebelando contra a obrigação de ficarem trancadas em casa em condições, muitas vezes, precárias de vida[11]. No Brasil, também já se registram saques a supermercados[12], transeuntes sendo atacados por dependentes químicos e grupos se organizando em protestos contra governadores que determinaram quarentenas mais severas[13].

Voltando a pergunta de Marta, no começo do texto: realmente é preciso fechar tudo e proibir as pessoas de trabalhar? Infelizmente, vamos deixá-la sem esta resposta. Nossa geração, nem a geração de nossos país, viveu algo sequer parecido. Não nos foi deixado um manual ou qualquer protocolo para se enfrentar o tipo de crise pela qual estamos passando. Porém, acreditamos que conseguimos demonstrar que o lockdown completo não é a única alternativa que vem sendo empregada para se superar a pandemia e com isso, não estamos dizendo que a situação não é grave.

As mais de 4 mil mortes na Espanha e de 8 mil na Itália nos mostram que, quando evoluída para pneumonia, a contaminação por Covid-19 é altamente letal. Em que pese não podermos dar uma resposta pronta para Marta, descrevemos como fórmulas estão sendo testadas mundo afora para o enfrentamento do avanço da epidemia e para a salvação de vidas. A boa notícia é que nem sempre essas fórmulas passam pelo sacrifício das atividades de onde os mais vulneráveis economicamente da sociedade tiram seu sustento.   

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A PESQUISA

Para a realização de nossa pesquisa, consultamos inúmeros sites que vão de veículos internacionais de comunicação a sites oficiais de diversos governos. Os links para todos esses sites estão nas referências.

Nossa amostra, compreende os 22 países elencados no grupo do G20 (sim são mais de 20) + 3 países que consideramos estratégicos pela relevância em nosso subcontinente (Chile), pela repercussão que tem provocado em nosso país (Israel) e pela excentricidade de estar próximo a China e ter adotado medidas diversas da vizinha gigante (Singapura).

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NOTAS

[1] Nome fictício. Marta preferiu não revelar sua identidade.

[2] Como Brasília é conhecida entre os moradores do Distrito Federal

[3] https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2019/09/ibge-sem-carteira-assinada-informalidade/

[4]https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20080-favelas-resistem-e-propoem-desafios-para-urbanizacao

[5] Tradução livre.

[6] https://thediplomat.com/2020/03/japans-limited-response-to-the-covid-19-pandemic/

[7] https://www.channelnewsasia.com/news/singapore/covid-19-coronavirus-singapore-why-no-lockdown-measures-12572000

[8] https://www.thejakartapost.com/news/2020/03/24/no-lockdown-for-indonesia-jokowi-insists-as-covid-19-cases-continue-to-rise.html

[9] https://www.timesofisrael.com/officials-agree-to-new-coronavirus-restrictions-details-yet-to-be-announced/

[10] https://www.channelnewsasia.com/news/world/french-police-lockdown-central-paris-as-yellow-vests-defy-covid-12538598

[11] https://www.trtworld.com/opinion/coronavirus-lockdown-in-france-leads-to-the-brutalisation-of-minorities-34828

[12] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/apos-saques-a-mercados-policia-civil-passara-a-fazer-rondas-noturnas-na-grande-sp.shtml

[13] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,caiado-pede-responsabilidade-anticoronavirus-e-e-vaiado-por-bolsonaristas,70003234130


Fontes consultadas

https://www.usatoday.com/in-depth/news/2020/03/24/coronavirus-state-measures-contain-disease-vary-widely/2897975001/

https://www.sixthtone.com/news/1005324/24-hours-in-post-lockdown-shanghai

https://thediplomat.com/2020/03/japans-limited-response-to-the-covid-19-pandemic/

https://de.usembassy.gov/covid-19-information/

https://www.businessinsider.com/coronavirus-uk-may-have-left-covid-19-lockdown-too-late-warns-hunt-2020-3

http://www.rfi.fr/en/france/20200324-france-tougher-coronavirus-lockdown-measures

https://www.bbc.com/news/world-asia-india-52024239

https://www.bbc.com/news/world-europe-51810673

https://www.themoscowtimes.com/2020/03/25/coronavirus-in-russia-the-latest-news-march-25-a69117

https://torontosun.com/opinion/columnists/lilley-canada-heads-ever-closer-to-full-lockdown-amid-covid-crisis

https://www.pharmaceutical-technology.com/features/coronavirus-affected-countries-south-korea-covid-19-outbreak-measures-impact/

https://www.marketwatch.com/story/more-than-a-week-into-a-lockdown-spain-waits-for-coronavirus-to-loosen-its-deadly-grip-2020-03-24

https://www.theguardian.com/world/2020/mar/25/australia-coronavirus-stage-2-shutdown-not-lockdown-which-places-closed-what-open


https://gritdaily.com/what-is-life-like-in-mexico-during-lockdown/

https://www.thejakartapost.com/news/2020/03/24/no-lockdown-for-indonesia-jokowi-insists-as-covid-19-cases-continue-to-rise.html

https://www.nst.com.my/world/world/2020/03/577616/covid-19-netherlands-extends-partial-lockdown-june

https://english.alarabiya.net/en/News/gulf/2020/03/25/Coronavirus-Saudi-Arabia-s-King-Salman-orders-lockdown-in-Riyadh-Mecca-Medina
https://www.dailysabah.com/turkey/turkey-introduces-drastic-measures-as-coronavirus-death-toll-increases/news

https://www.swissinfo.ch/eng/covid-19_coronavirus–the-situation-in-switzerland/45592192

https://www.lanacion.com.ar/sociedad/coronavirus-ciudad-anuncia-mas-medidas-afrontar-pandemia-nid2344628

https://www.channelnewsasia.com/news/singapore/covid-19-coronavirus-singapore-why-no-lockdown-measures-12572000

https://www.irishtimes.com/news/world/africa/covid-19-south-african-lockdown-will-not-curb-spread-for-at-least-two-weeks-1.4211166

https://www.i24news.tv/en/news/israel/1584473767-netanyahu-announces-three-new-measures-to-combat-covid-19

https://s3-us-west-2.amazonaws.com/www.gob.cl/coronavirus/instructivo_cuarentena.pdf

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