2ª FASE DA GUERRA DA UCRÂNIA: A BATALHA DE DONBASS

A batalha, cujos preparativos já duram vários dias, se tornará a maior e, infelizmente, a mais sangrenta do século XXI. O agrupamento das Forças Armadas da Ucrânia, que pode ser envolvido, é de cerca de 90 mil militares, o que significa que a Rússia não combaterá com menos efetivo do que isso. Nunca houve uma batalha dessa magnitude desde a Segunda Guerra Mundial.

No final do mês de março, mais precisamente a partir do dia 29/03, a situação militar na Ucrânia mudou significativamente – e isso se deve, em primeiro lugar, a um movimento significativo de tropas russas que se retiraram das frentes situadas em Kiev, Chernihv e Sumy, reagrupando-se e promovendo recomposição de unidades após significativas perdas nas batalhas desenvolvidas e desgastes inerentes à operação militar iniciada em 24 de fevereiro com incursão em 5 eixos. Após promoverem diversos cercos nas imediações de Kiev (principalmente pelas direções de Irpen, Bocha e Bosvary) unidades russas foram massivamente transferidas de Kiev e Chernihiv.

Mapa da retirada das forças armadas russas no norte da Ucrânia concentrando esforços para conquistar o leste e o sul do país.

O reagrupamento de tropas na Ucrânia assumiu um caráter tão grande que se caracterizou como uma pausa estratégica, com uma significativa mudança da estrutura de comando central de operações (agora tendo como líder o General Aleksandr Dvornikov, com experiência significativa na 2ª Guerra da Chechnya e na intervenção militar russa na Siria), sucedendo a uma estrutura descentralizada no qual os batalhões táticos ligeiros que compõem a estrutura de combate regular das tropas russas operavam de forma não centralizada e sem uma unidade central de coordenação, comando e controle das operações desencadeadas nas várias frentes. Como as Forças Armadas Russas atuam muito na forma de BTG (batalhão tático ligeiro) o resultado líquido é que os BTGs não têm a massa (isto é, infantaria) necessária para tomar o terreno urbano defendido por assalto em cidades grandes e densamente povoadas. Pelo menos, não a um custo razoável em perdas de combate.

De acordo com os acordos de Istambul esboçados e atualmente congelados quanto à resolução, o exército russo reduziu ao máximo sua atividade perto de Kiev. Na prática, isso significou a cessação das operações ofensivas na direção de Vasilkov e Bykhov e a retirada das tropas russas para a linha estável de Bucha – Borodyanka – Irpen com Gostomel na retaguarda. A pressão sobre as Forças Armadas da Ucrânia na direção de Boryspil e Brovary na outra margem do Dnieper na direção condicionalmente de Chernihiv também foi interrompida em decorrência de impasses operacionais relacionados ao efetivo insuficiente e mal distribuído e aos constantes contra-ataques promovidos por unidades de sabotagem ucranianas nas colunas mecanizadas estruturadas neste território, o que gerou baixas significativas nos primeiros 15 dias de conflito. Por vários dias, enormes colunas de tropas russas foram retiradas de Kiev pela Bielorrússia e pela região de Chernihiv da Ucrânia na direção de Kharkov. Sua escala é tal que, em retrospectiva, pode-se dizer que ocupar Kiev se constituiria um problema na visão de vários especialistas militares russos que comentaram a retirada, já que acarretaria grande destruição da infraestrutura, mortes de milhares de civis, perdas potenciais muito altas de recursos militares e humanos. A batalha em curso em Mariupol expõe a dificuldade do combate urbano em áreas densamente povoadas e com fortificações estruturadas em áreas residenciais, o que gera lentidão de avanços, pouca efetividade de blindados em ruas e avenidas devido à baixa mobilidade e vulnerabilidade a perdas infligidas por setores defensivos armados com sistemas antitanque e snipers bem distribuídos em locais de difícil acesso, como arranha-céus e ruas com construções aglomeradas.

Durante o interregno desta pausa estratégica, as tropas russas estão se movendo para a linha de frente além de Kharkov, ocupando através de duras batalhas posições estratégicas ao sul, dentre os quais se destacam Izyum e Kamenka, onde havia forte concentração de fortificações ucranianas. Combates nessa direção estão sendo travados perto da vila de Krestische (Khrestische), e a antiga linha de defesa das Forças Armadas da Ucrânia perto da vila de Dolyna deixou de existir junto com a vila. Além disso, os combates estão ocorrendo nos arredores de Barvenkovo, e esta é exatamente a mesma direção, o que significa o cerco do grupo Donetsk das Forças Armadas da Ucrânia. A tomada destas cidades permite às forças russas importante vitória tática para avançar na direção de Slavyansk – Kramatorsk e Barvenkovo, fechando o “caldeirão” de Donbass.

Situação atual das forças russas na Ucrânia.

Vale ressaltar que as tropas ucranianas também estão realizando um reagrupamento espelhado. A guarnição de Kiev recebeu um sinal claro de que ninguém invadiria a cidade. Como resultado, unidades prontas para combate estão sendo retiradas de Kiev por transporte ferroviário e em reboques na direção de Dnepropetrovsk. Como ficou conhecido pelos relatórios do Estado-Maior Zhovto-Blakit, as principais forças de artilharia das Forças Armadas da Ucrânia, inclusive da capital, foram levadas para a região de Luhansk. Segundo relatos das redes sociais, a rodovia Dnipro-Pavlograd está entupida com equipamentos militares das Forças Armadas da Ucrânia, que, aparentemente, estão se movendo em direção à face norte do Donbass.

Os primeiros escalões já chegaram à parte oriental da região de Dnepropetrovsk e estão partindo para Pavlodar. Quase todas as partes da reserva vão para esta área. Na região de Dnepropetrovsk-Pavlodar, as Forças Armadas da Ucrânia estão criando uma grande linha de defesa, como um grande punho militar, espelhando as ações das tropas e aliados russos.

O que isto significa? A Rússia e os aliados já organizaram um grande avanço através Izyum, contornando o grupo de 90.000 AFU – Forças Armadas da Ucrânia e batalhões nacionalistas no Donbass. Do sul, começaram os preparativos para um avanço semelhante ao norte de Ugledar e perto de Novomikhailovka, embora ainda ocorram pesadas batalhas posicionais nestas cidades, sem avanços. Esta ainda é a mesma preparação para o cerco do agrupamento Donbass das Forças Armadas da Ucrânia, apenas forças muito maiores estão se reunindo lá do que o planejado há uma semana, às custas não apenas de unidades próximas de Mariupol, mas principalmente daqueles que são removidos de perto de Kiev.

A Rússia teve perdas muito grandes de material e efetivo especialmente no norte da Ucrânia.

Vale ressaltar que a região do Donbas está em guerra há oito anos. Mais de 90 soldados ucranianos foram mortos em 2021 defendendo a linha de contato. Desde o final de fevereiro, as posições ucranianas estão sob fogo de artilharia regular, com civis mobilizados de Donetsk e Luhansk, ocupados pelos russos, empurrados para ataques às trincheiras ucranianas. O objetivo desta atividade russa era fixar os então 40.000 soldados ucranianos na área de Operações de Forças Conjuntas (JFO), impedindo-os de impactar os combates para Mariupol, Kharkiv ou Kyiv.

As Forças Armadas da Ucrânia, por sua vez, percebendo que não será mais possível evitar o cerco do grupo Donbass, estão reunindo um novo aglomerado de forças prontas para o combate na região de Pavlograd. Potencialmente, essas forças podem:
a) atuar como uma reserva e uma nova linha de defesa, já que o local mais natural para fechar a caldeira é apenas Pavlograd ( ou Pokrovsk, que é tecnicamente mais próximo);
b) organizar uma tentativa de arrombamento do anel já após seu fechamento, o que se assemelha fortemente às tentativas de “desbloqueio” de Mariupol, até agora infrutíferas e que resultaram em pesadas perdas de forças ucranianas.

Em outras palavras, ambos os lados em conflito estão criando uma nova linha de frente com antecedência posicional, pois é claro que a defesa das Forças Armadas da Ucrânia no norte está gradualmente se desfazendo e, no sul, não direcionou reservas estratéticas para tentar uma contra-ofensiva em Mariupol, que teria resultados catastróficos em perdas diante do completo cerco realizado por forças russas e milícias separatistas. Para a Ucrânia, trata-se de uma tentativa de organizar um contra-ataque estratégico na região de Donbass que poderá ser determinante para o desdobramento político-militar, imporndo suas condições mais favoráveis em futuras negociações com a Rússia. A Rússia, por outro lado, corrige ligeiramente o plano original, em parte por razões políticas e, em muitos aspectos, por razões puramente militares conforme já explicado, movendo grandes forças para a direção considerada principal (cercando Donbass).

A invasão russa custou caro as forças armadas ucranianas e a população civil. Cenário de devastação.

A missão primordial da Ucrânia é infligir danos irreparáveis ao exército russo, sangrá-lo o máximo possível, obter novas razões informativas para combater a Federação Russa, que apoiará os aliados em sua determinação de ajudar a Ucrânia e na Federação Russa causará decepção entre a população. O objetivo estratégico predominante da Rússia é cercar e destruir o agrupamento Donbass com o mínimo de perdas para as tropas russas e infraestrutura das cidades das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk.

Tendo tomado um corredor terrestre de Rostov a Kherson, as forças russas estão se preparando para avançar para o norte para cortar as linhas de abastecimento de Donetsk. Outras unidades russas – algumas recém-formadas e outras reposicionadas – estão se formando para avançar para o sul ao redor de Luhansk de Kharkiv para completar o cerco.

A batalha será muito diferente do avanço em Kiev. As unidades russas no início da guerra não estavam prontas ou devidamente abastecidas para combates pesados, já que apostaram em assaltos móveis rápidos. Agora os russos avaliam cuidadosamente o que estão enfrentando e com apenas três eixos (Kharkhiv, Donbass e a oblast de Kherson já consolidada) para apoiar podem concentrar seus suprimentos. As defesas aéreas russas têm boa cobertura sobre o Donbas e provavelmente serão capazes de trazer um poder aéreo significativo. Combinado com sua vantagem na artilharia e o fato de que os combates serão no campo e não nos centros urbanos, as tropas ucranianas precisarão manobrar para sobreviver em áreas abertas, já que a paisagem predominante em Donbass é do tipo estepe.

Ao mesmo tempo, os russos enfrentam um sério desafio. As forças ucranianas no Donbass compreendem algumas das unidades mais profissionais e motivadas do país. Os russos têm uma vantagem no poder de fogo, mas estarão lutando perto da paridade numérica, contra 90 a 120 mil soldados ucranianos. Se o plano deles é cercar as unidades ucranianas, as forças russas precisarão defender o cordão de ambos os lados e, embora os soldados russos estejam agora mais bem preparados, o moral continua sendo um problema em várias unidades.

Pontos fortes da Ucrânia: grande agrupamento de forças bem armadas com sistemas antitanque eficazes como o Javelin, novas armas do Ocidente, conhecimento do terreno, boa defesa da muralha oriental de Severodonetsk a Avdiivka, onde batalhas posicionais se estendem por semanas com forte resistência ucraniana. Além disso, Kramatorsk, Slavyansk, Severodonetsk serão transformadas em cidades-fortaleza onde estão concentrados (somente estas cidades) 30 mil soldados das Forças Armadas da Ucrânia e 200 sistemas MLRS. Todas as novas armas dos EUA/Grã-Bretanha/França/Alemanha são enviadas para a frente oriental, estima-se que já existam 24.000 ATGMs do tipo Javelin e NLAW e MANPADS como Starstreak e Stinger distribuídos às forças ucranianas.

Os blindados russos sofreram perdas pesadas devido a capacidade ucraniana de luta aos comboios de suprimentos e no cenário urbano.

Pontos fortes da Rússia: superioridade aérea, partes motivadas das milícias separatistas, iniciativa estratégica, a capacidade de lançar continuamente ataques de mísseis, ampla reserva estratégica de recursos militares.

Ao mesmo tempo, um aumento acentuado (quase três vezes) no número de forças russas na direção de Nikolaev foi observado após pesadas batalhas de atrito com unidades das Forças Armadas da Ucrânia em torno desta cidade. A questão fundamental inicialmente era a falta de efetivo para operações em cinco áreas operacionais, mas agora esse desequilíbrio está sendo gradualmente eliminado com aglutinação das forças existentes e repostas nas frentes de Kharkhov, Nikolayev e Donbass, mantendo um grupo para evitar contra-ataques advindos de Zaphozirhie. As metas prioritárias da segunda fase da operação militar estão delineadas, sendo imprevisível o resultado no campo de batalha.

Kharkov continua a ser uma das posições importantes. Diante da destruição por ataques de mísseis de cruzeiro que promoveram a destruição de um grande número de fábricas militares concentradas nesta cidade, ela adquiriu um significado simbólico após a publicação dos fatos de intimidação de prisioneiros russos e ter sido capital imperial na era czarista.

Para superar o problema de efetivo nas forças russas e evitar a mobilização geral de conscritos, o governo russo estabeleceu medidas de incentivo à voluntários . Três milhões de rublos serão pagos aos feridos com lesão grave. A família do voluntário falecido receberá 8 milhões de rublos do governo federal e cinco milhões de rublos do governador da região onde reside. Além disso, os filhos do soldado falecido receberão um apartamento (esta disposição ainda se aplica aos moradores da região de Moscou). Lembremos que a ênfase atual do Exército Russo em BTGs (batalhões táticos ligeiros) se deve à falta de mão de obra disponível – eles foram usados como expediente essencial durante a guerra da Chechênia , com o Ministério da Defesa da Rússia adotando em 2013 como uma proteção de mão de obra. Os BTGs e a doutrina do Exército Russo são construídos em torno do poder de fogo e da mobilidade, em detrimento da mão de obra, o que implica em dificuldades em guerras de grande escala e posicionais.

Para os militares ucranianos, as prioridades para a batalha no Donbas diferem ligeiramente do que era necessário para a defesa urbana. Um fornecimento consistente de mísseis antitanque e sistemas de defesa aérea portáteis permanecerá inestimável, já que a escassez de blindados e de combustível é altamente grave e preocupante diante de ataques sucessivos e contínuos russos.

Para os ucranianos, o próximo mês será caro, mas potencialmente decisivo. Se a Rússia tomar o Donbass, pode se firmar e fazer uma pausa enquanto cria reservas para uma ofensiva de verão. Por outro lado, se a Rússia não conseguir atingir seus objetivos, muitas de suas unidades serão empurradas para a frente e expostas, correndo o risco de desgaste persistente, como as tropas que recentemente se retiraram de Kiev. Como dito, será uma batalha com milhares de mortos e a maior na Europa desde a 2ª Guerra Mundial.

Rodolfo Queiroz Laterza, Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública.

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