A falta que faz um herói

Eu conheci um herói pessoalmente, acompanhei toda a sua vida profissional e a tragédia da sua perda. Vi e senti de perto o que é viver e dar a vida por um ideal, um ideal em sentido estrito da palavra, isso é, não egoísta ou imaturo, revoltado ou utópico, mas um ideal cristão, de amor incondicional ao próximo, mesmo que esse próximo fosse habitante de um outro país, mergulhado no sofrimento e nas misérias morais, espirituais e humanas, mesmo que esse próximo, muitas vezes, não quisesse ser ajudado ou agisse a tamanha dedicação de forma cínica.

Em poucas linhas, tentarei, de maneira por vezes insuficiente e falha, prestar uma pequena homenagem a um grande amigo, que foi policial militar, oficial zeloso, pai e marido amoroso e grande cidadão do Brasil e da humanidade. Esse herói se chamava Cleiton Batista Neiva, Oficial da Polícia Militar do Distrito Federal, morto no terremoto ocorrido no Haiti e promovido “Post Mortem” a patente de Capitão de Polícia.

APMB

Conheci o então Cadete Cleiton na Academia de Polícia Militar de Brasília, APMB, onde ele, já cursando o segundo ano, ajudou a receber os novos cadetes recém egressos da vida civil. Com os dois anos de convivência no Curso de Formação de Oficiais, CFO, reparei que ele sempre se portava de maneira digna e exemplar, educadíssimo, procurava dar o exemplo em tudo que fazia, seja no fardamento ou na postura durante os infindáveis serviços de plantão, porém, destacava-se também a sua correção e cobrança, o que as vezes deixava alguns Cadetes irritados, pois cobrava que tudo saísse conforme o figurino, sem “acochambração” como chamávamos.

oficiais primeiro bpm 2001
Foto do 1BPM em 2000. O tenente Cleiton é o quinto em pé contando da esquerda para a direita. O autor deste artigo é o quarto em pé da direita para a esquerda.

1° BPM

Voltei a conviver com ele quando fui declarado Aspirante a Oficial em dezembro de 2000, sendo destacado para servir no Primeiro Batalhão de Polícia Militar, responsável pela segurança da Asa Sul do Plano Piloto. Apesar de ser um batalhão grande, com mais de seiscentos homens e mais de vinte oficiais, estreitamos na nossa amizade aos poucos, pois a carga de serviço era brutal, com ocorrências graves quase todos os dias e com as dificuldades próprias de época, que perdurou até meados de 2005, onde devido a absoluta escassez de verbas, muitas vezes tínhamos que tirar dinheiro do próprio bolso para pagar óleo de motor, reparo de pneus de viaturas, munições, papel, cartuchos de impressora e tantos outros materiais indispensáveis para que o serviço à população fosse prestado a contento.

Foi durante essa primeira fase de convivência que passamos por uma situação terrível, onde o então Tenente Haroldo, que havia dado uma carona ao Cleiton até a aliança francesa (onde viria se formar e adquirir a proficiência no francês que acabaria o levando ao Haiti), sofrera um sequestro relâmpago enquanto o aguardava no carro do lado de fora da escola de línguas. Nesse dia eu estava de serviço de Oficial de Ronda, chamado Fox 21, e com muito custo e com o alerta a todas as viaturas de Brasília, conseguimos localizar o Tenente que havia sido deixado amarrado a uns 50 quilômetros de distância, graças a Deus ileso.

Depois desse susto, a amizade entre todos os oficiais subalternos se estreitou e foi quando começamos a conviver e a conversar mais, onde ele me contou sobre a sua vida, que morava na cidade de Ceilândia com a mãe e a irmã, que tinha uma namorada e que economizava cada centavo para estudar e comprar um imóvel, que acabou por se concretizar dois anos depois, com a compra de um belo apartamento na Cidade de Águas Claras.

Pós Graduação e ONU

Em seguida, começamos a cursar uma pós graduação em segurança pública, na UPIS, que, há época, era uma iniciativa pioneira no Brasil, graças aos esforços dos Coronéis da PMDF Felipe Dantas e Nelson. As dificuldades eram muitas pois conciliar o serviço policial, família e despesas era um tarefa por vezes estafante. O curso foi muito bom e tivemos a oportunidade de conhecer pessoas interessantes e nos aprofundar em matérias como criminologia de maneira até então impensável.

Contudo, o Cleiton passou na prova para a missão de paz da ONU no Haiti, MINUSTAH, e começou os preparativos para seguir em missão para esse pais que é considerado o mais pobre do continente americano e que passava por grandes tribulações políticas e uma guerra civil por poder e pelo crime, que estava chocando o mundo. Acredito que a sua decisão foi acelerada pelo fim do seu namoro, o qual se dedicara tanto.

general heleno e cleiton
Tentente PMDF Cleiton é o da direita da imagem ao lado do General Heleno.

Após a sua ida para o Haiti, permaneci ainda um bom tempo no curso, mas devido a minha transferência para a recém criada Unidade de Rondas Táticas Motorizadas, ROTAM, e gravidez da minha esposa, optei por abandonar o curso sem entregar a monografia, uma decisão difícil porém necessária naquele contexto, afinal em primeiro lugar vinha a família e depois a profissão.

Continuamos mantendo contato por meio de internet, e as vezes, ele conseguia ligar de Porto Príncipe, explicando o quão delicada era a situação daquele país e de todos os países que mandaram contingentes para a missão de paz, especialmente o Brasil.

cleiton no haiti
De serviço no Haiti. O Tenente Cleiton é o que tem um binóculos.

Foi durante a missão que ele, mais uma vez, se destacou pelo profissionalismo e competência, recebendo uma admiração sincera de policiais e militares do mundo todo que conviveram com ele e, devido a isso, as suas responsabilidades foram sendo aumentadas muitas vezes, conflitando, em um primeiro momento, com a sua pouca idade e a sua patente de Tenente.

O amor brota em terras áridas

Foi durante esse período de aproximadamente dois anos que ele conheceu uma jornalista austríaca chamada Irene, que prestava serviço para a ONU. Passado algum tempo começaram a namorar e depois se casaram. A cerimônia foi feita na República Dominicana, pais vizinho ao Haiti e que ocupa uma parte da mesma ilha, porém, diferente do país irmão, é um belo país que tem um vida praticamente normal.

Logo após o seu casamento na República Dominicana, encontrei com o Cleiton em uma das vezes que veio a Brasília para encontrar com a família e resolver problemas burocráticos na PMDF. Estava feliz como nunca o vira na vida e empolgado com a esposa e com o futuro. Ele me mostrou o apartamento em Águas Claras que já havia sido entregue pela construtora e que havia sido mobiliado com esmero para o início da nova fase da vida.

Ele me explicou que devido ao término do período máximo de permanência pela PMDF no Haiti ele teria que retornar ao Brasil, mas, devido ao serviço prestado, as Nações Unidas fizeram um proposta para que ele ficasse mais um ou dois anos como funcionário da própria ONU, o que ele estava inclinado a aceitar, devido ao contrato de serviço da esposa e da própria natureza da missão, que era permanecer no Haiti, que agora estava começando a experimentar uma vida normal graças a Missão de Paz liderada pelo Brasil.

O casamento e a chegada de Yannick

Em seguida, ele me convidou para uma segunda cerimônia de casamento, que desta vez seria um casamento militar realizado aqui em Brasília. Fiquei muito feliz com o convite. No dia do casamento, realizado em uma casa de festas à beira do Lago Paranoá, compareci como manda o figurino, de farda de gala, juntamente com os demais colegas oficiais, e de espada, para o famoso “teto de aço” ao final da cerimônia. O que mais chamou a atenção de todos era a verdadeira torre de babel em que o casamento se tornara, com convidados da esposa Irene, oriundos da Áustria, e de mais dez países diferentes e de continentes diferentes, com Ásia, Europa, América e África. O vídeo de homenagem aos noivos que passou no telão, sem legendas, era impressionante, pois foram feitas homenagens em inglês, francês, Creole (língua do Haiti) e o que mais fosse. Nunca havia presenciado algo parecido na vida.

Em seguida veio a notícia: A esposa estava grávida e era um menino, o seu nome não podia ser mais internacional: Yannick.

A tragédia

Então, ás 16 horas e 53 minutos e 10 segundos, horário local (21h53m10s UTC), na terça-feira, 12 de janeiro de 2010, um terremoto de grau 7 na escala Richter, que vai até 9, devastou o pequeno e sofrido país. O terremoto causou grandes danos a capital Porto Príncipe e outros locais da região. Milhares de edifícios, incluindo os elementos mais significativos do patrimônio da capital, como o Palácio Presidencial, o edifício do Parlamento, a Catedral de Notre-Dame de Porto Príncipe, a principal prisão do país e todos os hospitais foram destruídos ou gravemente danificados.

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Viatura da ONU tenta chegar a sede das Nações Unidas. Tragédia.

A sede da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), localizada na capital, desabou e um grande número de funcionários da ONU perdeu a vida. O Cleiton era um deles.

Imediatamente começaram a chegar notícias da tragédia pela imprensa brasileira e, ao ver as primeiras imagens da dimensão do ocorrido, me gelou o coração. Espero que o Cleiton esteja bem, pensei. Mas dentro de poucos dias chegou a confirmação da morte dele, graças a Deus, a esposa Irene e o filhinho Yannick, de dois anos, escaparam ilesos.

Em seguida começaram os preparativos para que se mandasse uma comissão de Oficiais para buscar o corpo dele e trazê-lo de volta a Brasília. Eu me apresentei como voluntário, juntamente com vários outros oficiais, para a missão, mas o Comandante Geral há época proibiu terminantemente o deslocamento de qualquer policial de Brasília ao local, devendo essa missão ficar a cargo do Exército Brasileiro, que havia perdido mais de vinte militares no evento, e de uma equipe de salvamento do Corpo de Bombeiros de Brasília, que havia sido enviada em um C-130 da FAB para auxiliar nos esforços de resgate. Com muita decepção me resignei e aguardei notícias.

O corpo dele foi localizado e enviado ao Brasil para receber a homenagem póstuma de herói da PMDF, que graças a uma bem aventurada mudança de Comando, foi autorizada e preparada pelo novo Comandante Geral, Coronel Martins.

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Devido a minha esposa estar grávida de sete meses, decidi que entraria de férias e que logo em seguida ao velório viajaria para que o peso emocional daquela situação não afetasse em demasia a gravidez, pois o sofrimento da minha esposa, que conhecia o Cleiton e a esposa e filho, já estava muito elevado. Saímos do velório direto para o aeroporto, totalmente arrasados.

O sofrimento da Mãe, da irmã, da esposa, dos familiares, colegas e amigos foi intenso. A comoção foi enorme, com cobertura da imprensa e presença de centenas de pessoas.

Foi uma cerimônia simples, porém bela, onde todos que o conheceram, ou não, souberam naquele momento que ele foi, e sempre será, um exemplo de dedicação, profissionalismo e amor ao próximo.

O que eu posso dizer, ao final dessas palavras que reavivaram dolorosas memórias, e que ele foi um Oficial exemplar, correto, honesto e dedicado, inclusive na sua paixão pelo Haiti, o país mais miserável do continente americano, e esse amor e dedicação a uma terra devastada pelo paganismo, violência e tragédia fez com que ele adquirisse a admiração de policiais e militares do mundo todo. Sendo por isso um herói da nossa polícia.

helicoptero flores
Helicóptero da PMDF derrama flores no funeral do Tenente Cleiton. Honra e saudade.

Ele sempre trabalhou e se dedicou a tudo o que dava valor na vida, a profissão, a Fé em Deus, a família e aos amigos, com amor e seriedade, sem esperar reconhecimento, e não seria diferente depois que a morte o levou para a Glória de Deus. Por isso essa e tantas homenagens feitas e escritas a ele, na verdade, não são realmente para ele, pois isso ele nunca quis nem em vida, e sim para nós, amigos, colegas e familiares, que nesses tempos difíceis precisamos tanto de exemplos de vidas honestas, sinceras e dedicadas ao bem comum, com fé inabalável.

Quanto a patente de capitão, recebida post mortem, nada mais é do que um reconhecimento honorífico da nossa polícia, do nosso país e de toda a humanidade pelo seu exemplo, escrito com sangue, de amor ao próximo e dedicação a missão policial militar, seja aqui ou no Haiti, já que no lugar onde ele se encontra hoje, o paraíso da Glória de Deus, ela não tem significado, sendo apenas uma referência a um herói do Brasil, que faz muita falta.

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Memorial do Tenente Cleiton: Um vida que passa mas que deixa marcas de serviço e amor ao próximo.

Capitão Olavo Mendonça.

Fonte das fotos: G1 e site Missão de Paz.

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