Brasil e Venezuela, comparando capacidades

A Revista Exame publicou em seu site ontem, 24 de Fevereiro de 2018, a matéria intitulada “Como se comparam as capacidades militares de Brasil e Venezuela”. Apesar de partir de uma fonte conceituada na área de Defesa (a publicação The Military Balance, do IISS – International Institute for Strategic Studies), não foi consultada uma edição atual, tendo sido usada a edição de 2016 – a versão mais atual é de 2018. A comparação, além de mostrar dados incorretos, faz interpretações no mínimo discutíveis, levando o público leigo a uma conclusão bastante errônea sobre as capacidades militares do Brasil.

Acredito que a jornalista não foi bem assessorada por consultores com conhecimento no assunto, portanto, no intuito de esclarecer estes pontos, neste artigo analiso os principais parágrafos da matéria e suas conclusões.

Vamos a eles.


Parágrafo: “De acordo com o Military Balance, um atlas publicado pelo think tank britânico International Institute for Strategic Studies, o Brasil tinha em 2016 cerca de 660 mil combatentes, espalhados entre o Exército, a Marinha, a Força Aérea e a Força Naval. Já o regime de Maduro tinha, no mesmo ano, 207 mil soldados.”

Incorreto. De acordo com o The Military Balance de 2018 (sem diferenças significativas neste ponto em relação ao de 2016), os números são os seguintes:

Os números acima não levam em conta a Milícia Bolivariana, que teria, segundo anunciado por Nicolás Maduro, ditador venezuelano, aproximadamente 1.500.000 homens e mulheres – o que colocaria a Venezuela em vantagem numérica). No entanto, esta é uma força de capacidade militar extremamente duvidosa, segundo qualquer análise militar séria.


Parágrafo: “‘… na guerra é sempre mais fácil defender do que atacar’, diz ele. E mesmo com maior número de soldados, o Brasil perde em quantidade e potência dos equipamentos.”

Além da afirmação “mais fácil defender do que atacar” demonstrar desconhecimento de realidade militar atual, é preciso que se esclareça melhor o que exatamente a matéria entende por “quantidade e potência de equipamentos”. A afirmação é incorreta. Em termos de quantidade, consultando o citado The Military Balance, o Brasil é superior. Alguns itens selecionados para ilustrar os números:

Em termos de “potência”, caso a referencia sejam os tão temidos Sukhoi Su-30 venezuelanos, sim, eles são tecnicamente superiores aos F-5M brasileiros; no entanto, além dos Su-30 serem um número bem menor, os F-5M foram modernizados recentemente e a FAB cuida muito bem da manutenção dos mesmos, sendo que os mesmos inclusive já surpreenderam forças aéreas mais poderosas em exercícios.

Além disso, a comparação militar séria não leva em conta simplesmente equipamento versus equipamento; é preciso considerar fatores como treinamento, doutrina, manutenção, logística, horas de vôo, e uma série de outros fatores.

Além disso, a FAB (Força Aérea Brasileira) possui capacidade REVO (Reabastecimento em Vôo), coisa que a Aviación Militar Bolivariana não possui. Este ponto também é muito importante, possibilitando uma capacidade estendida de atuação das aeronaves.

Neste quesito, o Brasil, apesar de utilizar caças teoricamente inferiores, possui doutrina e treinamento muito bem sedimentados, participa constantemente de exercícios e possui uma capacidade de manutenção muito superior à dos venezuelanos.


Parágrafo: “Desde o governo de Hugo Chávez (1999-2013), a Rússia tem fornecido armamentos para os venezuelanos. Em dezembro do ano passado, por exemplo, dois caças bombardeiros russos com capacidade para levar armas atômicas aterrissaram em Caracas.”

Os aviões russos que aterrissaram em Caracas em dezembro passado (assim como em outras ocasiões anteriormente), são bombardeiros (não caça-bombardeiros; há uma diferença importante) Tupolev Tu-160. Os mesmos possuem capacidade nuclear, o que não significa que estivessem transportando armamento nuclear na ocasião; além disso, não significa em hipótese alguma que estes aviões tenham sido “fornecidos” à Venezuela como a matéria sugere. A Venezuela não dispões dessas aeronaves e NÃO possui capacidade nuclear.


Parágrafo: ‘O Brasil não tem, há muitos anos, a tradição de se preparar para a guerra. A Venezuela, ao contrário, sempre teve forte presença dos militares e da Guarda Nacional Bolivariana na defesa da soberania’, afirma Carolina Pedroso, pesquisadora de relações internacionais na Universidade Estadual de São Paulo.”

Com relação a “preparação para a guerra” citada na matéria, seria interessante esclarecer melhor o que pretende dizer. A matéria mostra desconhecimento sobre a preparação e prontidão das forças armadas brasileiras, que constantemente participam de exercícios militares (inclusive no exterior), e de missões da ONU no estrangeiro, por exemplo. Estas ações mantém as forças adestradas e em prontidão. Um exemplo recente foi o exercício Cruzex 2018 em novembro passado, coordenado pelo Brasil e com participação de diversos países. A Venezuela foi inclusive convidada, mas não participou.

A matéria enfatiza o fato da GNB “ter presença na defesa da soberania venezuelana”, sem mencionar absolutamente nada neste sentido sobre as forças armadas brasileiras, dando a entender que as mesmas não se envolvem em nossa soberania. Seria importante trazer exemplos de que momentos a jornalista entendeu que as forças armadas brasileiras não tiveram atuação na defesa de nossa soberania. É exatamente o contrário. As forças armadas brasileiras são um exemplo de compromisso com o país e estão sempre prontas a defender nossa soberania.


Parágrafo: “Outra diferença é o orçamento das Forças Armadas. Em 2016, segundo o Military Balance, o governo brasileiro investiu 82 bilhões de dólares para o Ministério da Defesa contra 52 bilhões de dólares no equivalente venezuelano. Mas vale notar que por aqui, 80% do orçamento é usado para pagar salários.”

Qualquer que seja a fonte consultada, os números apresentados estão incorretos e muito longe da realidade. Além disso, a matéria enfatiza que o Brasil despende um grande percentual do orçamento em salários, sem especificar a mesma informação para a Venezuela, impedindo uma comparação acurada.

Utilizamos aqui duas fontes: o já mencionado The Military Balance 2018 e o SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute). Os valores estão expressos em dólares norte-americanos.


Parágrafo: “Além dos números e dados, Juliano Cortinhas destaca que há fatores imensuráveiscomo a capacidade de resistência do exército venezuelano e o ímpeto de resistência da população.”

A mesma afirmação pode ser feita para o Brasil: a capacidade de resistência das forças armadas e da população brasileira também é imensurável. Da forma como está escrita, a frase dá a entender que o Brasil e seu povo não tem fibra, nem orgulho, nem coragem. Seria muito interessante se a jornalista e o especialista pudessem esclarecer melhor este ponto, pois no entendimento deste autor, esta frase não tem o menor sentido além de exaltar o povo venezuelano e denegrir a imagem do povo brasileiro.


Parágrafo: Sem capacidade de deslocar, em tempo hábil, o seu contingente das Forças Armadas, uma saída que o governo Bolsonaro poderia tomar, em tese, é a de facilitar a entrada do Exército dos Estados Unidos.”

O que significa exatamente “sem capacidade de deslocar seu contingente”? A matéria não considera o contingente militar brasileiro existente na região? Ou que as forças armadas brasileiras não possuem meios de deslocar tropas pelo país? Esta é uma afirmação sem base alguma; é uma afirmação falaciosa que leva a conclusões muito errôneas.

*Colaboraram neste artigo: Luiz Reis e Valter Andrade


 Além dos pontos acima analisados, a matéria deveria ter levado em conta uma série de outros fatores de fundamental importância para uma análise militar séria, mas que, possivelmente por falta de informação ou má assessoria, foram ignorados.

Economia e capacidade industrial

O Brasil possui um PIB e uma capacidade industrial extremamente superiores à Venezuela. Se por um lado estamos longe de grandes potências, de outro nossa indústria de defesa não deixa de ser bastante significativa. Basta ver as empresas brasileiras neste mercado: Embraer Defesa, Avibrás, Imbel, Akaer, Atech e uma miríade de outras que podem ser facilmente identificadas apenas consultando o site da ABIMDE, entidade que congrega empresas do setor.

Além disso, projetos como o caça Gripen e o PROSUB (programa de submarinos, inclusive um deles nuclear), atestam a capacidade de nossa indústria. No caso da Venezuela, é notoriamente sabido, inclusive amplamente divulgado na imprensa especializada, que, além da produção de petróleo (e mesmo essa enfrenta problemas), aquele país não possui capacidade industrial, importando quase tudo o que consome.

Treinamento e educação

As forças armadas brasileiras mantém centros de instrução de excelência em todas as armas, a exemplo do CIGS (Centro de Instrução de Guerra na Selva), para citar apenas um representante. Além disso, nossas escolas militares são de altíssimo nível – vide, por exemplo, ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), AFA (Academia da Força Aérea), AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), IME (Instituto Militar de Engenharia), CN (Colégio Naval), ESG (Escola Superior de Guerra), todas entidades de excelência e que recebem inclusive alunos estrangeiros.

Guerra Cibernética e Eletrônica

Nossas forças armadas possuem e desenvolvem capacidades avançadas em EW (Electronic Warfare, ou Guerra Eletrônica), como exemplos, a FAB dispõe das aeronaves E-99/R-99 com capacidades de AEW, SIGINIT/COMINT que são únicas em nosso continente.

As três forças desenvolvem também projetos e capacidades na área de Defesa Cibernética, outra área que exige conhecimento avançado.

Considerações finais

Há uma série de outros fatores, organizações e políticas que poderiam ser abordados para um comparativo sério, que não caberiam no escopo deste artigo. Entende-se que a revista Exame, cuja especialização é Economia e Negócios, não possua conhecimento especializado na área de Defesa. No entanto, além de erros em dados básicos (mesmo consultando fonte do setor – IISS), não teve a devida assessoria de consultores com conhecimento na área, o que a levou a conclusões bastante distantes da realidade. Uma pena, pois é uma publicação de boa penetração no mercado.

Recomendo também a leitura do artigo “Venezuela: o que temos a temer?”, comparando Venezuela e Brasil neste mesmo blog, que pode ser acessado aqui.


GBN News

O nosso parceiro, GBN News do especialista em geopolítica Angelo Nicolaci, também escreveu uma excelente e bem detalhada crítica a essa matéria da Exame, e reproduzo aqui parte de sua conclusão: “É realmente muito decepcionante para pessoas que conhecem os meandros da defesa e a posição geopolítica brasileira, ler matérias como esta publicada pela EXAME, a qual não teve o devido suporte de especialistas que possuam mais profundidade e conhecimento no assunto”. A matéria completa pode ser lida no site do GBN News acessando este link.

Canal Arte da Guerra

O Comandante Robinson Farinazzo, do Canal Arte da Guerra, também nosso parceiro, produziu um vídeo onde comenta outros comparativos militares lamentáveis que tem sido divulgados na grande mídia. Assista ao vídeo aqui.

Publicado originalmente no site – O Velho General

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