Complexo de Vira Latas

O desafio de motivar profissionalmente a tropa transcende o binômio remuneração digna e equipamentos modernos. A despeito da PMDF estar entre as corporações mais bem pagas e equipadas do Brasil, ainda é notório o desapontamento de grande parte de seu efetivo em relação à carreira. Somos uma tribo de quilombolas urbanos, libertos legalmente, mas isolados.

Precisamos de uma campanha afirmativa para recuperar nossa auto-estima. Parece que existe uma endemia na corporação de um complexo de “vira-latas” que faz com que os policiais, mesmo tendo um bom salário e melhores condições de trabalho, sintam-se profissionais de segunda classe. Talvez esse complexo seja o sintoma de uma doença mais grave e antiga, provocada por anos de exclusão social. Basta lembrarmos que até a Constituição de 1988, policiais militares não podiam sequer votar.

Entretanto, esse quadro vem mudando. Com o fim do rancho, por exemplo, os policiais começaram a realizar suas refeições nos comércios próximos aos locais de trabalho aproximando-se da comunidade. A possibilidade de se trabalhar em horário especial, quando matriculados em cursos universitários ou secundaristas, fez com que ficássemos ainda mais próximos, tanto individualmente, quanto na relação corporação-sociedade.

É preciso uma mudança da cultura da instituição em todos os níveis e instâncias. Mesmo que nossos manuais, regulamentos e leis exaltem conceitos de cidadania, prevenção e trato urbano, na prática esses valores são praticados de forma superficial, não por convicção, mas por obrigação. A verdade é que, no seio da tropa, a ação vigorosa, a repressão e as prisões em flagrante são encaradas como o “verdadeiro serviço de polícia”. Essas convicções refletem a imagem que o policial faz de si mesmo e de sua profissão. Dessa forma, os valores íntimos, nutridos pelo policial em relação à sua profissão, estão em perpétuo conflito com o que a sociedade espera dele. O reflexo é que o distanciamento entre o que o policial é e o que se espera dele traduz-se numa esquizofrenia institucional, cujo principal sintoma é um complexo de “vira-latas” injustificado.

Políticas pontuais que tenham por objetivo diminuir a distância entre o real e o ideal são uma solução. As mudanças devem começar na seleção e formação de pessoal e se estender a toda a tropa. Essas ações devem ser realizadas com o envolvimento da sociedade, associações, instituições religiosas e sociais, clubes etc. Devem não apenas mostrar, expor de forma teórica, o modelo ideal ao policial, mas educá-lo no sentido de que ele faça parte do processo. Assim, apenas cursos e treinamentos são insuficientes, sendo necessária a imersão do profissional na realidade da comunidade.

Incentivo à leitura, à participação em comunidades religiosas, além de atividades culturais como cinema, teatro e exposições de arte contribuirão para mudança do modo como os policiais encaram sua realidade. O policial deve participar de atividades que desenvolvam habilidades de convívio e tolerância com pessoas diferentes, daí a importância do envolvimento
de instituições que não estejam diretamente ligadas à caserna. Quando plenamente inserido o profissional poderá compreender de forma clara as necessidades da sociedade e a real natureza de sua atividade, recuperando sua auto-estima.

Luiz Fernando Ramos Aguiar.


**Este artigo foi publicado originalmente na primeira edição do  Jornal Conexão 190, da Policia Militar do Distrito Federal, em agosto de 2007. O periódico foi produzido pelo Centro de Comunicação Social da corporação por cerca de um ano e tinha como proposta ser um veículo de comunicação corporativa moderno e em sintonia com o público interno. Infelizmente o projeto foi descontinuado, mas você pode conferir a primeira edição na integra no link abaixo:  

 CONEXÃO 190

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