Estádio de futebol ou Campo de Batalha?

Incidentes incluindo grande número de mortes de torcedores de futebol, desafortunadamente, seguem acontecendo pelo mundo. A maior tragédia do gênero remonta a 1964 em Lima, Peru, quando chegou a 318 o número de mortos (jogo Peru versus Argentina). Depois do Peru, a segunda maior “tragédia do futebol” ocorreu em Gana em 2001, contabilizadas 126 mortes entre membros de torcidas rivais (Hearts of Oak e Kumasi Ashanti Kotoko). É também bastante conhecido na literatura sobre o “Hooliganismo” o episódio ocorrido em 1989 em Hillbourough, Inglaterra, quando morreram 96 pessoas presentes a uma partida entre o Nottingham Forest e o Liverpol. No Brasil, em 1995 faleceu um torcedor e 102 ficaram feridos durante conflito havido no Jogo final, Palmeiras e São Paulo, pela Supercopa de Futebol Júnior de 1995.

Em 2012, a comunidade internacional mais uma vez é surpreendida por um conflito de grandes proporções na verdadeira “trilha de sangue” do enfrentamento entre torcidas de times de futebol. Ele ocorreu em Port Said, Egito. A tragédia aconteceu na noite de quarta-feira, 1º de fevereiro, no estádio onde era realizada uma partida do campeonato nacional egípcio entre o Al-Masry (time local) e o Al-Ahly (campeão nacional). O time anfitrião derrotou o visitante por três gols a um, mas o jogo não terminou bem, passando a um conflito generalizado. No balanço final, 74 mortos, mais de mil feridos e dezenas de presos.

Briga de torcidas. Uma tragédia comum no Brasil.

O trágico incidente de Port Said, que impressiona pelo saldo de mortos e feridos, foi referido por Joseph Blatter, presidente da FIFA, como “Mais um dia negro na história do esporte”. Esse novo “massacre” (como todos os demais no Peru, Gana e Inglaterra) parece ser de difícil compreensão, considerando o contexto lúdico do entretenimento de massa em que o futebol é considerado. – Fica posta a questão o que leva uma arena esportiva a transformar-se em verdadeiro “campo de batalha”?

O tema genérico da violência, por si só, é complexo. Ele comporta elementos da irracionalidade humana e que resistem ao entendimento em uma análise objetiva. As interpretações do fenômeno são quase sempre aproximativas, com os pesquisadores tendo de seguir o “caminho cognitivo” de uma espécie de “espiral de violência”. Buscam um núcleo irredutível e último, capaz de permitir explicações plausíveis. Mas, ao que parece, existe uma multiplicidade complexa de fatores desencadeadores da violência, incluindo aspectos culturais, sociais e psicológicos, e que juntos convergem numa intrincada rede de causalidade que pode irromper em comportamentos destrutivos como os verificado nos estádios de futebol.

Para entender esse contexto da ‘violência versus futebol’, é necessário recorrer a várias áreas e teorias do conhecimento humano, mais além da mídia, na busca de explicar o fenômeno do comportamento social em geral e, especificamente, da violência em nível coletivo (aí incluída a ‘psicologia das multidões’). A tal respeito, é antiga a referencia de Emile Durkheim ao termo ‘efervescência coletiva’, metáfora da manifestação de afetos reprimidos que fica aplicada simbolicamente aos efeitos de grandes eventos religiosos, desportivos e até mesmo dos carnavais e dos distúrbios produzidos pela turba dos estádios em certames desportivos (‘multidão instantânea’). É o caso de uma verdadeira “erupção emocional” e que faz com que o ‘homem-médio’ atue de maneira distinta da que atuaria em situações normais do cotidiano.

O que existe hoje de mais contemporâneo e inclusivo nesse sentido, em se tratando de espetáculos de futebol, vem a ser o que se convencionou chamar ‘hooliganismo’. Na respectiva panóplia de objetos de estudo desse tema está incluída não só a prática de esportes, mas também a dinâmica própria dos comportamentos coletivos. E deles fazem parte a violência, a desordem e até mesmo uma espécie de criminalidade bastante peculiar.

Torcedor desmaiado após ser agredido em jogo de final de campeonato. Violência gratuita.

O dicionário e guia de pesquisa The Language of Psychology (A Linguagem da Psicologia) define hooliganismo como um tipo de comportamento humano desafiante e destrutivo. O termo tem sido freqüentemente vinculado pela mídia aos fanáticos ingleses de clubes de futebol (soccer na acepção anglo-saxônica) ou, alternativamente, com comportamentos de natureza análoga e expostos por torcedores ou fãs (expressão intuitivamente simpática, mas derivada da abreviatura de fanáticos, e que traz conotações não tão igualmente simpáticas…) de qualquer outro esporte. O tema, no contexto da violência social, recebe atenção regular da mídia desportiva especializada, ainda que, segundo a literatura, ocorra muito mais em função da gênese, processos, fatos e ocorrências não necessariamente relacionados com o futebol.

O Hooliganismo seria, essencialmente, mais uma expressão da violência contemporânea nela mesma, e ainda que manifesta no contexto do esporte, não necessariamente uma derivação do esporte propriamente dito. O recente confronto de torcidas organizadas em Port Said parece confirmar essa tese. São conhecidas globalmente as tensões políticas e sociais pelas quais atravessa a nação egípcia (depois da chamada “Primavera Árabe” de 2011), bem como o clima de sublevação lá estabelecido contra a lei e a ordem, clima esse capaz de ter funcionado como causa e catalisador emocional para o conflito de Port Said.

Exatamente pela característica multifacetada do fenômeno da violência envolvendo grandes efetivos humanos, outras fontes, qualitativamente diversas da cobertura meramente factual da mídia, esportiva revelam a ambigüidade com que a expressão “hooliganismo” é utilizada. Por tal razão seria necessário qualificá-la de maneira específica sempre que aparecer referida genericamente. Ainda que o termo esteja amplamente relacionado à violência e aos crimes perpetrados no decorrer das partidas de futebol, ou mesmo de outras competições esportivas em geral, ele pode traduzir algo mais espontâneo e genérico, até mesmo desvinculado dos contextos exclusivamente futebolísticos.

Briga de torcida4
Briga de torcidas na Inglaterra. Pelo menos lá a lei é forte.

A desordem parece ser uma motivação irredutível do “hooliganismo”, independente das causas desencadeantes. O fenômeno das torcidas organizadas contrasta com o dos torcedores tomados de forma avulsa, ao apresentarem componentes qualitativos diferenciados e muitas vezes perigosos (no caso, ‘o todo não é a mera soma das partes’). Uma “torcida organizada” pode constituir um “case” interessante.

Um indivíduo que faz parte, por exemplo, de uma torcida como a “Gaviões da Fiel”, não é um torcedor qualquer e isolado, mero apreciador do futebol e para quem a máxima gratificação é o próprio enlevo da competição esportiva. Diferentemente, ele estabelece uma relação identificatória visceral com seu time, o que funciona como um “elemento transcendente”. Sua personalidade, portanto, é absorvida de forma intensa, impregnada com um ‘amor exaltado’, com uma ‘paixão arrebatadora’ e uma ‘lealdade irrevogável’. Todas essas expressões comportamentais são incompatíveis com um torcedor comum e individualizado, sem arroubos tomados em contornos tão intensos. A citação abaixo é bastante representativa:

Coquetel molotov arremessado contra policiais em estádio. Cenas de guerra.

“Todo gavião precisa de um ninho. Em nosso caso, desde 1969, as arquibancadas dos estádios do Brasil tornaram-se o verdadeiro reduto alvinegro. Nesse “habitat” corinthiano temos a função de gritar os 90 minutos em prol de nossa ideologia mosqueteira. Ser Gavião é amar e lutar pelas cores do Coringão, não importando se existem ditadores contrários a nossa filosofia. Preto e branco são reflexões de uma vida inteira de dedicação, glórias e, acima de tudo de muita paixão pelas cores do Sport Club Corinthians Paulista. Hoje essa união de corações, chamada GAVIÕES DA FIEL, forma a maior, melhor, mais respeitada e invejada torcida organizada do país” (Fonte:http://www.gavioes.com.br/default39.asp)

A citação é intensa e pode sugerir o perigo do “Hooliganismo”. Com tudo isso, não é de advogar o fim das torcidas organizadas, tampouco tomar a “Gaviões da Fiel” como protótipo de torcida violenta ou perigosa em termos reais. O que o trecho citado sugere é que a sinergia de ardores e atitudes efervescentes, albergadas no ambiente coletivo de torcidas, pode ser o “caldo de cultura” ideal para eventuais erupções violentas, sectárias, xenófobas, racistas, intolerantes, quase sempre dirigidas ao torcedor adversário. Le Bom, na citação abaixo, expõe com argúcia essa verdadeira metamorfose que os grupos podem operar sobre os indivíduos:

“(…) pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos.” (Fonte: Gustave Le Bon, Psicologia das Multidões)

Nessas mesmas linhas, igual que ocorre nas seitas fundamentalistas religiosas ou nos partidarismos políticos de viés totalitário, as torcidas organizadas trazem também suas respectivas “ideologias”. Exigem de seus integrantes uma adesão incondicional (“uma vida inteira de dedicação”), em penhor da qual se insuflará megalomanias e se cometerá os mais variados desatinos.

O Corinthians sempre aceita a disputa Nunca foge da luta
Porque é seu ideal (…)
É por isso que eu vivo e canto
Na arquibancada eu me agiganto
Sou Timão até morrer!
(Ode ao Corinthians, Fonte: http://letras.terra.com.br/gavioes-da-fiel/1039528/)

Como se observa na letra da música, assim como em inúmeros outros termos empregados no futebol, as metáforas beligerantes são muito comuns: “artilheiro” (jogador que fez mais gols), “defesa”, “atacante”, “contra-ataque”, “esquadrão de ouro” (seleção brasileira), “capitão” (líder do time em campo), “tiro de meta” (saída de bola feita pelo goleiro), “volante” (jogador defensivo que atua na frente dos zagueiros, ou ‘tropa de assalto’). O futebol americano, por sua vez, guarda um paralelo ainda mais evidente com a arte bélica e confirma a tese da “violência simbólica” implícita aos eventos esportivos, conforme fica evidente pela citação abaixo:

“Os esportes, contudo, sempre serviram como válvula de escape para aliviar as tensões do dia-a-dia. O futebol americano, especialmente, cumpria isso à risca ao transformar o jogo numa batalha. Foi criado como uma guerra de 100 jardas, cujas regras foram escritas por generais de verdade, como Lombardi, Shula ou Bowden. A televisão levou essa linguagem adiante, com gráficos e efeitos sonoros que transformaram o campo de jogo numa trincheira de guerra e um lançamento de bola em um poderoso míssil.” (Fonte:http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/esportes/2001/09/22/joresp20010922001.html)

A esse verdadeiro ritual simbólico de catarse coletiva, no qual os instintos mais primitivos são aplacados pelo sucedâneo atenuado da arte/estratégia dos espetáculos esportivos, some-se o catalisador emocional propiciado pelas multidões. O resultado é uma combinação realmente explosiva. As torcidas organizadas, com suas fanfarras, flâmulas, seus gritos de guerra e bandeiras, traduzem a fusão de milhares de indivíduos em um mesmo e único grupo, de forma que a personalidade individual cede aos apelos mais exaltados do coletivo, tal qual nas organizações formadas para a guerra. Novamente, vale lembrar a ciência comportamental e seus paradigmas:

“Num grupo, sentimentos e atos são contagiosos, e contagiosos em tal grau, que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse pessoal em prol do interesse coletivo.” (Gustave Lê Bom, Psicologia das Multidões)

A verdadeira comunhão entre torcedores de um mesmo time encontra metáfora singular também na noção de corpus mysticum (“união de corações”, como fica posto pelos “Gaviões”), representado pelas torcidas organizadas na figura quase “sacralizada” dos clubes futebolísticos, objeto de devoção incomum pelas torcidas organizadas. O mesmo se observa, mutatis mutandis, no âmbito religioso, pela devoção à figura impoluta do profeta; ou mesmo na seara político-partidária, expressa no culto ao arquétipo paternal do ditador (Fuhrer, Il Dulce e tantos outros mais…). Mais uma vez, é Le Bom que ensina:

“(…) sejam quem forem os indivíduos que o compõem [grupo], por semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento. (Gustave Lê Bom, Psicologia das Multidões)

Desatinos em meio ao ato de “torcer”, muitas vezes criminosos, têm sido objetos de reprovação social intensa. O “espírito esportivo”, tal qual a sociedade aspira e proclama, não contempla ações hostis e violentas como as que têm sido protagonizadas por algumas torcidas organizadas. Tais ações ferem um sentimento coletivo (da “sociedade como um todo maior”) arraigado, que empresta ao desporto um caráter festivo, ordeiro e pacífico (muitas vezes referido em seu “cavalheirismo”). O conflito entre torcidas organizadas certamente perverte uma “função nobre” do esporte, degenerando-o em intolerância odienta e dando vazão a uma competitividade destrutiva.

Os órgãos policiais se mostram afinados com o clamor social contra a ação violenta e até mesmo criminosa das torcidas organizadas, chamando a si as responsabilidades pela prevenção e repressão a este tipo de expressão da desordem e do crime. Ainda assim as instituições de segurança pública talvez ainda não tenham atinado, com o devido aporte teórico, para as particularidades dos espetáculos esportivos que envolvem multidões. Existem, portanto, variáveis típicas e que repercutirão nos aspectos operacionais do pronto emprego do contingente policial, mas que deverão ser também ser incorporadas dentro de um prisma mais abrangente, que envolva uma doutrina e uma pedagogia policial diferenciada para abordar tal tipo de fenômeno.

Nos eventos de massa, os conflitos envolvendo torcidas organizadas, dentro de uma tipologia criminal, assumem características específicas, devendo ser tratados (inclusive no planejamento da segurança pública) com o devido enquadramento psicossocial.

Briga de torcida1
Confrontos entre se de torcidas organizadas, ou delas com a polícia, são comuns em todos os países.

Conforme apontado por Le Bon, os cidadãos que participam de eventos como os aqui referidos em seu potencial de violência e letalidade, embora eventualmente insuspeitos e isentos da índole baderneira, podem ser insuflados ao crime e violência quando engajados em torcidas organizadas. Se o futebol pode ser também entendido como um ritual de violência simbólica (e as suas metáforas bélicas denotam isso), tal condição o colocará sempre numa linha tênue com a violência material tout court.

A violência, quando simbolicamente experimentada, tem como função evidente uma catarse coletiva, na qual todos os impulsos primitivos e de caráter destrutivo estão devidamente aplacados e sublimados. Mas nem sempre a sublimação será total… Ânimos acirrados por uma cultura de rivalidade excessiva entre torcedores podem eventualmente resultar em comportamentos altamente destrutivos. O limite entre a sublimação da violência e sua explosão pura e simples é algo para o que as autoridades da segurança pública deverão estar sempre bem atentas, todo tempo, o tempo todo. Se isso é uma contingência bem compreendida, deverá equivalentemente contemplar planos contingenciais exaustivamente desenvolvidos e ensaiados para, em último caso, serem corretamente postos em prática em situações extremas. Tudo isso passa a ser ainda mais aplicável em um país como o Brasil, o qual sediará importantes compromissos internacionais como a Copa das Confederações Futebol de 2013 e a Copa do Mundo de Futebol de 2014.

George Felipe de Lima Dantas.

Professor Doutor George Felipe de Lima Dantas é Especialista em Segurança Pública e colunista do BlitzDigital.

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