Modelos policiais e o risco Brasil

Pode parecer um tema técnico, mas não: o modelo policial adotado por um país reflete diretamente na proteção de seus cidadãos. Mas como assim?

No mundo todo há modelos policiais variados: uma única agência policial (Dinamarca), várias agências policiais (Brasil, França, Espanha, Itália, Portugal, Alemanha etc.), agências policiais municipais ao lado de outras estaduais e federais (Estados Unidos), mas em nenhum deles, à exceção do Brasil, há polícias dicotomizadas.

Mas o que seria um modelo dicotomizado? Pois bem, dicotomia significa que no Brasil a segurança pública é um serviço público essencialmente oferecido pelos Estados – não pela União ou municípios – por meio de duas agências policiais: as Polícias Civis e as Polícias Militares. Contudo, noutros países também há mais de uma polícia, e nem por isso se fala em dicotomia; o que faz de nosso modelo dicotomizado é o fato de que somente aqui cada polícia vai até certo ponto do trabalho de proteção social e, a partir daí, outra polícia começa o seu. Fala-se então de uma polícia de preservação da ordem pública (as Polícias Militares) e de uma outra polícia: judiciária (as Polícias Civis). Às Polícias Militares atribui-se a tarefa de prevenção e imediata repressão da criminalidade, enquanto às Polícias Civis a de investigação criminal.

Longe de atribuir às forças policiais, seja aqui ou em qualquer parte do mundo, a responsabilidade sobre os processos que levam à violência e à criminalidade, sabidamente frutos de uma série de fatores de ordem social desembocando nas cenas de violência, que tanto espaço conquistam dia-a-dia nos meios de comunicação social; todavia, a eficiência do Estado no trato da criminalidade está intimamente condicionada ao modelo de gestão. Um modelo moderno de administração gerencial não admite ensaios, tampouco o apelo a paradigmas ultrapassados, que assim se revelam por tratar novos problemas com as mesmos métodos do passado, tudo em homenagem à tradição.

E é essa tradição que cultuamos que faz de nosso modelo policial aquilo que pesquisadores chamam de isomorfismo mimético; a tendência de uma instituição de se aproximar de outra e a ela se assemelhar em forma. Nesse processo, a polícia judiciária busca se identificar como “um quase poder judiciário” (quase juízes), enquanto a polícia ostensiva às forças militares de defesa (Exércitos), tudo em busca de prerrogativas que, como “meras” polícias não conquistaram ao longo de nossa história.

Somente aqui, o bacharelado em Direito é visto como sinônimo de preparo para o exercício do trabalho policial; somente aqui, o substantivo “polícia” é considerado menos importante que o adjetivo (“civil” ou “militar”). Somente aqui não se mede o grau de eficiência das agências policiais a partir da gestão por resultados. Somente aqui as taxas de esclarecimento dos crimes, que gravita em torno de 2%, não é sequer objeto de pesquisas e publicidade.

O poder, e mais que isso: o dever, de o Estado, por suas agências policiais, darem a pronta e eficiente resposta aos crimes havidos implica diretamente a impunidade ou o verdadeiro império das leis. Entretanto, afora os casos em que há prisão em flagrante, o poder de o Estado identificar os criminosos e promover a justa aplicação da lei é fragilizado quando as investigações não chegam a sequer 2% dos autores de crimes. Isso tudo se soma ao terrível panorama brasileiro de exclusão social, degradação dos valores, fragilidade das leis, degradação das instituições penitenciárias e níveis de violência urbana.

Noutros países de democracia consolidada, a existência de uma única agência policial é descartado, porque gera um monopólio de poder, que põe em risco potencial o controle social; noutros países de democracia consolidada, o modelo militar de administração não é confundido com os pesadelos do totalitarismo; em países de dimensões geográficas consideráveis, não se cogita em polícias municipalizadas, porque sujeitas ao clientelismo; nos países mais evoluídos, as agências policiais agem dentro daquilo que se convencionou definir como “polícias de ciclo completo” (todas as polícias realizam a prevenção e a investigação criminais).

No Brasil, uma experiência já se mostrou bem sucedida como embrião do “ciclo completo”: a lavratura de Termos Circunstanciados de Ocorrência, nos casos de infrações penais de menor potencial ofensivo por policiais militares, além dos policiais civis. Contravenções penais e crimes cuja pena máxima prevista em lei não ultrapasse 2 anos, assim consideradas de menor potencial ofensivo, dispensam o inquérito policial e o registro feito, até pelo “policial de rua”, é levado diretamente ao Juiz dos Juizados Especiais Criminais. Isso acontece nos Estados de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Alagoas e Minas Gerais; São Paulo também o fez desde 01 de dezembro de 2001 até o dia 09 de setembro de 2009, quando foi abortado por uma Resolução do então Secretário de Segurança Pública, Antônio Ferreira Pinto, por questões hermenêuticas e pressões político-institucionais de duvidoso espírito republicano: um sintoma do modelo de Estado Patrimonialista.

Um modelo com polícias de ciclo completo teria o condão de alforriar as patrulhas de polícia ostensiva das horas perdidas nas delegacias à espera da lavratura de um reles boletim de ocorrência. Mudar essa realidade cotidiana, deixaria essa força de trabalho – altamente capilarizada – encarregada do varejo criminal, o que ainda desoneraria as polícias civis da burocracia e as guindaria ao status de uma polícia especializada na criminalidade complexa, elevando seus níveis de eficiência na elucidação dos crimes de autoria desconhecida.

Para evoluir, o primeiro passo é reconhecer as novas demandas e admitir que é possível mudar para melhor.

 Azor Lopes da Silva Júnior.

 Azor Lopes da Silva Júnior, 50 anos, é Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Doutor em Sociologia pela Unesp, Mestre em Direito pela Universidade de Franca, Especialista em Direito pela Unesp e em Segurança Pública pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade Federal do Paraná. É professor universitário em nível de graduação e pós-graduação, nas áreas de Direito Penal e Direito Constitucional. Autor de “Teoria e Prática Policial nos Juizados Especiais Criminais” e “Fundamentos Jurídicos da Atividade Policial” (Ed. Suprema Cultura). Currículo: http://lattes.cnpq.br/6088271460892546 

Fonte da foto: Ciências Criminais.

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