Ocorrências Policiais Envolvendo Suicidas

O texto a seguir aborda os aspectos envolvidos no atendimento de ocorrências envolvendo suicidas sob a ótica do negociador, mostrando quanta técnica uma situação tão delicada como esta exige. Supre, ainda que basicamente, a necessidade de direcionamento ao policial que se deparar com este tipo de ocorrência e que acabará por ter contato com o suicida antes mesmo chegada
do negociador especialista. Por outro lado, serve também para lembrar da altíssima taxa de suicídios praticados por agentes de segurança que por motivos diversos acabam por tirarem a própria vida.

OCORRÊNCIAS COM SUICIDAS

Artigo desenvolvido a partir de dissertação para o Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais (CAO), do Centro de Altos Estudos em Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo pelo Cap PM Hugo Araujo Santos.
Se as ocorrências de vulto abrangendo reféns são os casos policiais mais complexos, exigindo doutrina própria de Gerenciamento de Crises e Negociação Policial, os casos envolvendo pessoas com tendências suicidas são os mais difíceis de atuar e resolver.
Os incompreensíveis massacres em escolas nos Estados Unidos, o Caso Ônibus 174 (Rio de Janeiro, 12 de junho de 2000), o caso envolvendo o marceneiro Gilberto Lima em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo (que em outubro de 2006 manteve a esposa e a amante grávida como reféns por mais de trinta horas), o massacre de Realengo (abril de 2007) e o Caso Eloá (Osasco, outubro de 2008) têm em comum, além dos finais trágicos com mortes, o desvio psicológico de seus agentes e o questionamento da opinião pública em relação à ação policial.

As doutrinas de negociação policial tradicionais limitam-se a ensinar a lidar com criminosos que, surpreendidos durante um assalto, fazem reféns para poder fugir ou garantir a própria vida. Mas como lidar com suicidas, que tem objetivos diferentes, pois não querem fugir e nem sempre sair vivos? E se for um suicida com reféns? As comunicações envolvendo causadores com tendências suicidas são mais subjetivas e complexas do que as com criminosos, porque suas ações são mais emocionais e imprevisíveis.

O componente psicológico é um complicador que desafia o treinamento policial convencional e o raciocínio lógico, exigindo, portanto, uma doutrina diferente, que evite o empirismo e a simplificação dos procedimentos e privilegie uma comunicação técnica que vise a rendição, que além de expor policiais, suicidas e eventuais reféns a menos riscos, contribui para a recuperação psicológica do indivíduo, prevenindo novas tentativas.

O COMPORTAMENTO SUICIDA

O comportamento suicida é, sucintamente, todo ato pelo qual um indivíduo causa lesão a si mesmo, quaisquer que sejam os graus de intenção letal e de conhecimento do verdadeiro motivo desse ato. Esse comportamento é dividido pela doutrina em quatro manifestações[i]:

  1. Pensamento: também chamado de ideação suicida, é o grau inicial, quando se cogita a simples ideia de acabar com a própria vida como solução para seus problemas;
  2. Plano: o indivíduo decide pôr fim à vida e delineia como fará, passando atramar a própria morte, obtendo informações de como executar e planejando os detalhes de lugar, hora e método. Por vezes, deixa uma nota (carta, bilhete, gravação) de despedida;
  3. Tentativa: é a concretização do planejado, envolve também a ameaça de se matar, podendo ser fracassada ou não;
  4. Suicídio: autolesão deliberada que provoca a morte; é o sucesso em pôr fim à vida.

Para a Segurança Pública, a tentativa de suicídio é mais importante do que o suicídio em si, pois enquanto esta última é questão de saúde pública, a tentativa de se matar pode constituir uma quebra da ordem pública, que exige a adoção de medidas administrativas e operacionais especiais de controle de crises pela polícia e bombeiros.

NEGOCIAÇÃO COM SUICIDAS

A negociação é a primeira alternativa para resolver uma crise policial envolvendo reféns ou suicidas[ii] e o componente mais importante a se explorar na negociação é a ambivalência, já que, quase sempre, o indivíduo quer ao mesmo tempo em que tenta a morte, ser salvo. É a dicotomia “me mato x não me mato”.

Na verdade o suicida não quer morrer, porque ninguém sabe o que é a morte. Ele quer ser salvo ou se livrar de uma situação que lhe causa sofrimento insuportável. Porém, se fosse certa a possibilidade de suicídio, nem precisaria de intervenção policial e, o maior erro do negociador que se deparar com essa situação, é subestimar a intenção de morte do suicida.

As regras de comunicação na negociação com suicidas são ainda mais determinantes do que numa negociação com criminosos e dizem mais respeito às relações interpessoais entre negociador e causador do que ao problema em si. Ouvir calma e atentamente o que ele disser, entender seus sentimentos demonstrando aceitação e respeito, conversar francamente,externar preocupação e cuidado, ser compreensivo e falando positivamente, como uma possibilidade futura de acontecer (“quando você sair daqui vai melhorar…” e não “se você sair daqui pode melhorar…”), são dicas importantes para negociar com suicidas. Evitar interromper sua comunicação, ficar chocado, muito emocionado ou preocupado com a arma ou altura, dizer que você está ocupado, inferiorizá-lo ante seus problemas ou dizer simplesmente que tudo vai ficar bem fazendo o problema dele parecer trivial não ajudam. Perguntas indiscretas, comparação com os seus problemas, julgamentos do tipo “certo x errado” e tentar resolver seus problemas também não são eficazes.

As unidades de policiamento convencionais nem sempre dispõem de equipes com negociadores especializados de prontidão, muito menos equipamentos. Essa carência não pode ser empecilho para obter informações do causador, anotá-las e implementar uma comunicação técnica com ele até a chegada do policial especialista em negociação. Assim, é importante desenvolver formas simples de negociar, que possa ser implementada sem muito efetivo e equipamentos, mas que seja técnica, ordenada e eficaz. Seguem algumas práticas gerais para negociação com suicidas armados:
negocie sempre em equipe e não se exponha a risco: peça ao menospara um colega auxiliá-lo como anotador e segurança;
chame o suicida pelo nome e identifique-se pelo seu, evitandofunções e patentes militares que demonstrem uma superioridade a ele;
seja honesto e transmita segurança pelos sinais, gestos e palavras, não peça (“por favor não se mate”) nem demonstre preocupação exagerada com sua arma ou situação de risco;
identifique suas reais motivações e/ou patologias e não o inferiorize ou minimize seu problema;
valorize seus atributos, qualidades e bens e mencione semprepessoas queridas a ele;
selecione pessoas para conversar com ele e oriente-as previamente sobre sua conduta, o tempo de conversa e o que devem e não devemfalar;
mostre outras alternativas além da morte, mas respeite essa opção dele e não o deixe sozinho até o término do seu resgate.

A negociação resultará em três consequências: a rendição, o resgate tático ou a morte.

RENDIÇÃO

A rendição é o término desejável da negociação e, como no início, é um momento crítico em que qualquer precipitação pode pôr todo o trabalho de negociação a perder.

Quando o suicida está em vias de se render (bons negociadores percebem isso), o principal erro é tentar capturar o indivíduo em uma ação não coordenada com o negociador, geralmente quando ele abaixa a arma ou se distrai por qualquer motivo, normais nesse momento. É o oposto: tais atitudes podem ser indicadores de progresso e de que é melhor prolongar um pouco mais a negociação e ganhar sua confiança. Nesse instante, a paciência é fundamental até a rendição que dará ao suicida a expectativa otimista de ter ele superado seu problema, e não convencido disso.

Diferentemente das ocorrências com reféns, em que as rendições devem ser efetivadas por equipes táticas que farão a detenção de criminosos ou o resgate de reféns com segurança, nas ocorrências com suicidas a rendição é explícita, pressupõe a entrega da arma pelo causador e o time tático deve ser evitado, cabendo ao próprio negociador ir ao encontro do suicida quando este não mais oferecer risco para si ou para outrem, aproveitando o momento para, dissimuladamente, fazer uma busca pessoal visando outras armas que ainda possa ter consigo. A rendição deve evitar estardalhaço, humilhação, sermões e divulgação pela mídia, que busca na polícia sua fonte principal.

Nas ocorrências policiais com suicidas, as invasões táticas são reservadas aos grupos especializados apenas e se necessária a captura por resgate tático.

RESGATE TÁTICO

Na prática, para fins de competência para atuação, as ocorrências com suicidas dividem-se, basicamente, pelos locais, a partir da ameaça de se jogar de edificações, ou no solo, com armas, explosivos ou inflamáveis. Para resgate tático em ocorrências em altura ou com inflamáveis, o Corpo de Bombeiros[iii] possui avançadas técnicas de Salvamento em Altura. No solo, a competência é dos organismos policiais, em especial do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) que conta com técnicas e armas não-letais especiais[iv], conforme resolução da Secretaria de Segurança Pública[v].

MORTE

Um provérbio chinês ensina: “Espere o melhor, prepare-se para o pior e aceite o que vier”. Tomados todos os cuidados, o pior em uma ocorrência dessas é a morte do suicida e o policial deve estar preparado pra isso, mas de todos os erros que pode cometer na negociação, o mais imprudente é julgar que o suicida não tem coragem de se matar. Nunca se deve menosprezar os distúrbios de comportamento e ignorar a possibilidade de se suicidar. Por mais evidências de que a vítima queira apenas chamar a atenção, ninguém em sã consciência põe uma arma na cabeça, uma faca no pescoço ou sobe em um ponto alto ameaçando se jogar.

Entre profissionais das áreas da saúde e segurança pública, que lidam diretamente com a morte no momento em que ela acontece e que podem ter certa influência nesse ato, o abalo psicológico ocorre após não conseguir evitar o desfecho negativo e a resiliência é o fator maior de proteção que o negociador deve ter para não se deixar levar pelo ato de morte não evitado.

O policial deve saber que é ser humano e falível, que se empenhou ao máximo, com técnica e esmero, para evitar sua morte e que do outro lado há outro ser humano com livre arbítrio. Se não conseguiu evitar que se matasse, não foi por falta de capacitação ou empenho. Mesmo nos casos em que a negociação tenha sido bem sucedida é imprescindível o acompanhamento psicológico a fim de evitar a absorção das tensões envolvidas na negociação pelo policial.

CONCLUSÃO

O suicídio não tem explicações objetivas. Desagradável, é motivo de vergonha ou de condenação, sinônimo de loucura e assunto proibido em conversas informais. Embora seja uma das principais causas de morte entre os humanos, torna-se um peso para a família e para quem tentou e não conseguiu.

Por isso é evitado ou relegado a um plano menor na sociedade por não ser crime e por envolver indivíduo que é ao mesmo tempo autor e vítima, além das crenças que envolvem o tema. Reflexo disso é que as escassas estatísticas de suicídios divulgadas não costumam sensibilizar a opinião pública e, por conseguinte, não recebem a devida atenção. Só se torna problema quando envolve algum ente querido nosso ou alguém famoso, mas segundo Durkheim[vi], pode afligir qualquer pessoa.

A superação deste tabu pela desmistificação do tema “suicídio” na Corporação e adoção de técnicas próprias para negociação e intervenção tática torna o atendimento de casos envolvendo suicidas menos perigosos para todos, aprimora a técnica de atendimento a ocorrências dessa natureza ao mesmo tempo em que conscientiza e melhora a autoestima dos policiais, aperfeiçoando a prestação de serviço de Segurança Pública para a população[vii].

Hugo Araujo Santos é bacharel em direito, mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Públicas, especialista em Comportamento Suicida pela Unicamp e instrutor do GATE para Negociação com Suicidas.
E-mail: [email protected]
[i] Comportamento Suicida. Blanca Guevara Werlang e Neury José Botega. Ed. Artmed. Porto Alegre, 2004.

[ii] Gerenciamento de Crises: Negociação e atuação de Grupos Especiais de Polícia na solução de eventos críticos. Cap PM Wanderley Mascarenhas de Souza. Monografia do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMESP, 1995.

[iii] Corpo de Bombeiros: Decreto Estadual nº 58.931, de 04 de março de 2013 – Define as emergências próprias de atendimento pelo Resgate do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo.

[iv] Alternativas Táticas na Resolução de Ocorrências com Reféns Localizados. Cap PM Diógenes V. Dalle Lucca. Monografia do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMESP, 2002.

[v] Resolução SSP-13, de 05/02/2010 – Disciplina o procedimento para atendimento de ocorrências com reféns no Estado de São Paulo por parte das Polícias Militar e Civil.

[vi] O Suicídio. Émile Durkheim. França, 1897.

[vii] Ocorrências Policiais com Suicidas: Gerenciamento, Negociação e Controle de Distúrbios do Comportamento. Cap PM Hugo Araujo Santos. Monografia do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais, 2013.

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