Reflexões sobre a eterna divisão entre as polícias Civil e Militar

A recente polêmica envolvendo declarações do diretor da Polícia Civil do DF, revelam uma das facetas mais nefastas do quadro da segurança pública no Brasil, o sistema Jabuticaba de ciclo incompleto. Também chamado de esquizofrênico o sistema não divide o trabalho das corporações por delimitação territorial, pelo tipo de crime ou por qualquer outro critério técnico que possibilite a operação racional do combate ao crime. Ao contrário as Policias Militares são responsáveis exclusivamente pelo policiamento preventivo e ostensivo, enquanto as Polícias Civis executam as ações repressivas, investigando os crimes. As ações das corporações acabam sendo desenvolvidas de forma concorrente criando a uma disputa, evidenciada pelos comentários do Delegado Eric Seba que, sem saber que estava sendo gravado, deixou escapar sua opinião sobre as atividades desenvolvidas pelos policiais militares.

A corrente majoritária no Brasil defende a unificação como solução mágica para os conflitos sem se dar conta das abissais diferenças na estrutura e na cultura institucional das polícias. Esquecem que o problema não é a quantidade de instituições policiais existentes no país, mas forma como estão obrigadas à operar. Para dar um exemplo, nos Estados Unidos, calcula-se que existam cerca de 18 mil departamentos de polícia independentes, atuando nas esferas federal, estadual e municipal. A diferença é que por lá as corporações atuam de forma completa, ou seja, a instituição que prendeu o batedor de carteiras na rua continua e investigação do crime até que bandido seja levado a uma corte. Na França temos a Gendarmerie e a Polícia Nacional, a primeira militar atua em todo o território do país nas regiões rurais e nas cidades pequenas enquanto nas grandes cidades, como Paris, o policiamento e as investigações estão a cargo da segunda. Longe de gerarem conflitos a existência de diversos departamentos e corporações são uma garantia de democrática onde as instituições acabam exercendo uma função controladora de forma mútua, o que só é possível porque pelo exercício do ciclo completo de atuação mesclando ações repressivas e preventivas de acordo as exigências operacionais e estratégicas.

A divisão do trabalho das polícias da forma estabelecida no país empurra profissionais e instituições para uma divisão inconciliável. Quando um delegado entende que a prisão executada por um policial militar não tem os elementos necessários para a lavratura de um flagrante o militar acaba vendo na ação da autoridade algum tipo de revanchismo, afinal “ele não está nas ruas”. Da mesma forma quando um oficial da polícia militar se depara com uma guarnição da polícia civil, uniformizada, executando alguma ação acaba enxergando invasão nas atribuições constitucionais da PM, afinal “eles só querem ostensivos quando convém”. Não custa lembrar os diversos desentendimentos que já ocorreram aqui no Distrito Federal quando policiais militares, atuando de forma velada (sem farda), acabaram autuados por usurpação de função pública. O resultado é que a população acaba tendo duas policias pela metade. A verdade é que não é possível realizar ações preventivas puras, levantamentos de informações e mesmo investigações são necessárias, tanto para garantir a efetividade das operações quanto para dar segurança aos profissionais que estarão expostos nas ruas. Da mesma forma, durante os trabalhos de investigação batidas, execuções de mandatos e outras atividades exigirão a presença ostensiva das forças policiais. Eis nossa esquizofrenia.

A esperança é a adoção do ciclo completo de polícia. Infelizmente, por determinação constitucional, não é possível uma mudança completa do sistema sem um processo legislativo longo e penoso, de Emenda Constitucional. Contudo, aumenta em diversos estados a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), pelas polícias militares. Com a adoção desta medida os policiais militares podem, sem a necessidade de condução das partes à delegacia, solucionar todas as ocorrências envolvendo os crimes menor potencial ofensivo, ou seja, com pena de até dois anos. Para se ter uma ideia este tipo de crime é responsável por cerca de 90% das ocorrências, que poderiam ser resolvidas pelo policial militar, no local. Além da evidente vantagem para todos os envolvidos, policiais militares, vítimas e infratores, caso a medida seja aplicada a polícia civil teria seu efetivo liberado para investigação dos crimes mais graves, vocação constitucional da corporação. Se não é a solução para o sistema jabuticaba, pelo menos é um grande avanço.

Alguns estados brasileiros já adotaram a lavratura do TCO: como Santa Catarina que  realiza o procedimento em seus 293 municípios;  Rondônia; Paraná; e o Rio Grande do Sul, que iniciou a lavratura do termo no ano de 1996. Em outros, como em São Paulo, o avanço foi detido por questões políticas e legais, mas o termo é realizado em algumas localidades. As divergências legais sobre o tema começam a desaparecer e em 22 de setembro de 2017 o Supremo Tribunal Federal reconhece a legalidade da confecção do termo por policiais militares. Decisão do ministro Gilmar Mendes, nega provimento ao Recurso Extraordinário 1.050.631, da Defensoria Pública de Sergipe. A decisão renova a vontade de dotar as policias militares dessa ferramenta legal que permitirá um significativo avanço no atendimento à população garantindo maior independência na atuação das polícias.

O infeliz registro das declarações de Diretor da Polícia Civil do DF, vazados à imprensa, é manifestação mais exagerada de uma cultura corporativa ultrapassada, representada pelo modelo esquizofrênico da segurança pública no Brasil. Mesmo que a captura das falas tenham sido realizadas de forma desleal, e com interesse político, é fundamental emergir da lama e tentar enxergar além das disputas sindicais e partidárias. Ao pensar as soluções para segurança pública deve ser prioridade máxima o atendimento à população, razão única da existência de qualquer força policial.

Publicado originalmente no Portal Extrapauta  

link:http://extrapauta.com.br/reflexoes-sobre-a-eterna-divisao-entre-as-policias-civil-e-militar/

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