Bases antropológicas para um psicologia policial militar

POR – RAHUL GUSMÃO

Anterior a toda consideração sobre a polícia militar e a segurança pública em geral, há algo de essencial que nunca deixo de recordar. Há uma antropologia policial, há um ethos próprio dos guerreiros que integram essas tropas.

Mais de uma década de serviços prestados à polícia militar já havia me demonstrado ad nauseam que o tipo policial militar não é tão ordinário assim – dependendo de quem estiver lendo esse texto, entenda também o sentido pejorativo do termo. A princípio, a cultura própria da caserna forma a sua personalidade, deixando-a “padrão”. Mas só essa cultura não é suficiente para explicar tudo. Há algo mais; algo que está mais profundo, enraizado no ser desses indivíduos e que, em última análise, os inspirou a ingressar na corporação e dedicar a sua vida a tão honrosa missão.

O ethos é o devir do indivíduo, o seu caráter. A personalidade é a atualização histórica desse. A personalidade é uma obra de arte construída pelo próprio indivíduo, com a cooperação da cultura, e deve tender a harmonizar-se com o seu caráter.

Como já havia dito Viktor Frankl, por trás de cada psicologia e, portanto, também por trás de cada psicoterapia, existe uma antropologia. Cada psicoterapeuta tem, como pano de fundo de suas medidas terapêuticas, uma concepção filosófica, científica ou ideológica do seu paciente, que serve de modelo ideal a ser buscado durante o processo terapêutico.1

O psicoterapeuta pode, portanto, buscar aprender sobre o seu paciente e, durante o processo, ajudá-lo a lidar com a sua própria personalidade e caráter, buscando harmonizar a ambos, ou conduzi-lo, com a cooperação do mesmo, através de modificações da sua personalidade, a sufocar o seu caráter. Na minha avaliação, esse risco de despersonalização é um fator que pode fomentar incompatibilidades entre a personalidade do policial e a vida em caserna, acentuando o sofrimento mental.

Esse ethos próprio e distinto foi ficando mais patente para mim à medida que, interessado pelos tratamentos de saúde mental dos amigos e colegas de serviço, percebi que algumas recomendações dadas pelos profissionais no curso do processo terapêutico não tinham qualquer efeito substantivo e, por vezes, iam de encontro a personalidade do paciente. Não estou dizendo que esses profissionais eram incompetentes. Ao contrário, em sua maioria eram excelentes cuidadores. O problema estava na concepção antropológica que eles tinham de seus pacientes policiais: ao tratá-los, o faziam da mesma forma que com civis, quando são naturalmente distintos.

Há toda sorte de teorias e descrições tipológicas, psicológicas, antropológicas e caracterológicas nos manuais de ciência hoje em dia. Cada uma tem sua perspectiva e método. Uma, porém, enfoca o ser humano desde o ponto de vista daquilo que é essencial: o seu sentido ou objetivo real na vida. Somado a isso, sua tradição e comprovação milenares vai evitar que caiamos nos modismos e nas ideologias por vezes presentes nas ciências sociais.

Vou me deter sobre a adaptação teórica do filósofo Olavo de Carvalho da doutrina hindu tradicional, mais especificamente sobre a teoria das castas, que possui concretude, estabilidade, exatidão e força explicativa maiores do que as teorias modernas das ciências sociais, sobretudo em relação à teoria marxista da luta de classes.2

Logo de cara é preciso ser taxativo: as castas não são classes sociais. As classes sociais, os papéis sociais, as profissões ou os ofícios são, ao contrário, aspectos do exercício vocacional das castas que se institucionalizaram, ao longo da história, nas civilizações.

As castas são na verdade tipos psicológicos. Os tipos se discernem pelo foco que possuem desde o centro de gravidade da sua alma. É aquilo pelo qual a pessoa tem mais apreço na vida e, portanto, busca verdadeiramente para si em última instância. A busca por esse algo é uma tendência inata da pessoa, da sua natureza humana. No transcurso do viver, essa tendência torna-se o eixo central da sua personalidade. Essa tendência inata do indivíduo é o ethos, é a morada do indivíduo.

Na vida madura do indivíduo, as suas ações perseguem essa tendência, com exceção daquilo que é acidental ou que serve de meio para alcançar o que é essencial. Essa tendência está ligada ao sentimento ou à consciência daquilo que é o real empírico para a pessoa.

Para o brâmane, o que é real é o imutável, o transcendente, o eterno. A sua tendência é a busca pela verdade, pela realização espiritual. Esses são os tipos puramente intelectuais, contemplativos, religiosos. Suas posses são a sabedoria e o conhecimento. São tipos, portanto, objetivamente voltados ao espírito.

Para o kshatrya, é real também aquilo que o é para o brâmane. Ele também possui uma inteligência aguda, porém não a usa, como o brâmane, para a contemplação, mas para a ação. Sua tendência, portanto, é a forte adesão ao dever e a busca pela virtude, pela honra, pela glória. São tipos cavaleirescos, guerreiros, abnegados. Por serem voltados à ação, podem possuir uma inclinação natural à agressividade que, entretanto, é compensada pela generosidade. Suas posses são a nobreza e a dignidade da alma. São tipos subjetivamente voltados ao espírito.

Para o vaysha, é real a riqueza, o bem-estar. Sua tendência é a busca por segurança, sucesso e abundância. Esses são tipos sistemáticos, controladores, organizadores. Possuem ideais de perfeição material do trabalho e da produtividade. Suas posses são a prosperidade e o conforto. São tipos objetivamente voltados à matéria.

Para o shudra, o real é si mesmo, a sua subjetividade, o seu corpo, necessidade e desejos. Sua tendência é a busca pelo prazer e a fuga da dor. São tipos mais imediatistas, dissipados e despreocupados. Não possuem nenhum interesse por aquilo que transcenda a sua vida corporal; não possuem ideais ou ambições e, em geral, nem se propõem a objetivos maiores de vida. Não lhes é agradável a ideia de buscar algo cujo o acesso seja mediato e ardoroso. Como sua única posse é o seu próprio corpo, se voltam exclusivamente a trabalhos manuais, trocam seu tempo e esforço por aquilo que lhes apetecer. Apesar disso, são capazes de intensa fidelidade e vigorosa retidão. São tipos subjetivamente voltados à matéria.

A legitimidade dessa tipologia psicológica é possível porque, apesar desses bens e valores estarem, a princípio, ao alcance de todos, as pessoas têm a sua preferência e escolhas. Isto é, elas não escolhem as mesmas coisas e não as obtêm da mesma forma. Há, naturalmente, uma distribuição heterogênea dos bens, dos talentos, das qualificações, hereditariedades e da disposição da vontade.

Malgrado a diferença hierárquica dos bens que se busca, os quatro tipos psicológicos têm igual dignidade, desde que sejam fiéis ao seu ethos, que persigam o seu objetivo com retidão. Logo, para cada casta, há critérios e julgamentos morais diferentes e formas diferentes de conduzir a própria vida – afinal, as regras da busca pelo prazer não são as mesmas que a do comércio, da guerra ou da vida intelectual e religiosa.

A essa altura, creio ser desnecessário dizer a qual casta pertence a atividade policial militar. Essa é uma das poucas profissões cujo o seu desempenho pode se identificar tão perfeitamente com o ethos próprio de uma casta. Claro, nem todos que prestam concurso para PM estão dispostos a viver uma vocação policial. Nem todos que se tornam policiais são kshatryas. Mas é natural que todo kshatrya busque ser policial.

1 Ver La idea psicológica del hombre, de Viktor Frankl, Madrid, Rialp, 1999.

2 Ver Sociopatia e Revolução, O mundo como jamais funcionou, de Olavo de Carvalho, Vide Editorial, Campinas, 2014, p. 419.

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