O homem, a polícia e os glóbulos brancos

Certa vez, um homem ficou doente. No começo ele tentou continuar vivendo da mesma maneira, mas não deu certo, pois a doença começou a piorar e atrapalhar a sua vida cotidiana. Passado algum tempo ele se viu forçado a contar a família, já que os sintomas eram visíveis, e aos amigos que alguma coisa estava errada com ele. O que, no começo, se restringia a uma leve dor de cabeça, foi passando para enxaqueca e se espalhando para outras partes e órgãos do corpo.

Sem saída a não ser procurar um médico, o homem, antes tão orgulhoso e seguro de si, agora vivia com medo, inseguro, evitava sair de casa e parou de trabalhar. Finalmente ele venceu o medo, o desleixo e a preguiça, tão comuns hoje em dia em quem trabalha muito quando se trata de assuntos sérios e que normalmente não se tem controle, e foi se consultar. No caminho ele revisava quanto tempo precioso foi perdido tentando não pensar no assunto, focando em outras coisas, procurando se divertir mais do que o normal, quase como um desespero por causa do problema que tomava conta da sua vida. Mas, quando o problema começou a afetar a família, os filhos, a esposa e os amigos, o jeito foi fazer o óbvio, procurar ajuda.

Além da aflição de ter passado tempo demais, ele tinha ficado inseguro em quem procurar, qual médico, qual especialidade, pois afinal, hoje é tudo tão complexo. Por fim decidiu procurar um médico famoso, que vivia sempre na mídia dando entrevistas para os programas fúteis de TV que passam pela manhã. A ideia no começo lhe pareceu demais, pois o preço que o médico celebridade cobrava era muito alto. Mas, dando-se por vencido, afinal se ele não fosse bom não seria famoso, conformou-se em ficar mais pobre porém com a esperança de voltar a ter uma vida normal.

Ao chegar no consultório do médico badalado, ele descobriu, quase que por acaso, que o tal médico não era médico. Pelo menos não no sentido que todos reconhecem como tal. Ele era na verdade um acupunturista, formado na China e especializado em Ciências Sociais por uma grande universidade federal brasileira. Isso deixou o homem intrigado, mas, como ele tinha vindo de longe e já estava lá mesmo, resolveu sentar no sofá e, tomando um café ralo oferecido pela atendente, ficou a observar a decoração da sala de espera, com quadros de arte moderna, que mais pareciam rabiscos feitos por uma criança de três anos, esculturas sem formas definidas e com imagens de deuses hindus espalhados por toda a sala. As revistas em cima da mesinha de centro iam na mesma linha, de arte, de literatura e, é claro, a revista Caras. A música ambiente, em volume baixo, era quase imperceptível, mas quando ele voltou a sua atenção, percebeu que eram músicas do Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Quando finalmente entrou no consultório o homem notou que o “médico” que ele tanto assistiu na TV no período que estava sem trabalhar era mais baixo do que ele tinha imaginado. Mas a aparência era a mesma, com um jaleco branco, camisa e gravata por baixo, cabelos engomados, barba rala e fala empoada. Depois do cumprimento de praxe, o homem se sentou defronte o especialista e viu a quantidade de diplomas pendurados, dentre eles, alguns em língua estrangeira. “O cara é bom” pensou consigo mesmo.

No começo o médico perguntou sobre a sua vida, o emprego, a família, histórico de doenças, etc. Depois sobre os sintomas, que o homem descreveu em detalhes, chegando quase as lágrimas ao citar a insegurança e incapacidade atual para trabalhar.

Depois de auscultá-lo e examiná-lo, o médico foi taxativo:

-Você está vivendo um processo de ataque autoimune.

-Como assim? Disse o homem sem entender.

– Você está sofrendo um ataque dos seus próprios glóbulos brancos, do seu sistema imunológico, é por isso que você está tão debilitado.

Após refletir alguns instantes, o homem respondeu:

– O Senhor tem certeza? Antes de procura-lo eu fui no posto de saúde e falei com um médico antigo, clínico geral, que cuidou de mim desde que eu era criança, e ele disse que o que eu estou sofrendo é exatamente o contrário, pois como eu trabalho muito,  tenho que cuidar da família e estou passando por problemas financeiros, o que aconteceu foi uma crise de baixa imunidade causada por stress, que permitiu que doenças oportunistas atacassem.

-Nada disso meu amigo, -Disse o médico com um sorriso cínico – o problema são os seus glóbulos brancos. Eles, esses agentes opressores do corpo humano, sempre agem sob a alegação de proteger os órgãos e as funções corporais, mas na verdade, o que eles fazem é causar mais sofrimento do que a doença. Acredite em mim, se eu não tivesse certeza eu estaria clinicando em um posto de saúde e esse médico velho, que não sabe de nada, estaria dando entrevista na televisão, concorda?

O homem estava confuso. Ele confiava no médico antigo, que era seu amigo. Mas, como todo mundo falou para ele procurar o “especialista da TV” ele havia terminado por aceitar que, antes de iniciar qualquer tratamento, devia se consultar com o grande especialista e depois tirar suas conclusões. Mas aquele papo era esquisito, e ele sentia que havia alguma coisa errada. Mas, como o médico famoso havia dito, se ele não fosse bom não daria entrevistas na televisão.

Depois disso o médico famoso continuou a lhe explicar que o grande mal do corpo humano eram os malditos glóbulos brancos, que de maneira opressora e patriarcal, agiam por absolta má fé e que quando na verdade davam a entender que estavam combatendo doenças eles estavam, na verdade, eram causando mais danos do que a doença em si. E ele, como grande especialista, garantia que isso acontecia por causa que as pessoas tinham um conceito errado das doenças, pois elas na verdade eram benéficas e que elas só existiam por que existiam os glóbulos brancos. Os efeitos atribuídos as doenças por conta de vírus e bactérias e os seus efeitos, como pus, febre, perda de apetite, dores e mal estar, eram, na verdade, causados não pelos agentes patológicos classificados como doenças, mas sim, por uma ação perversa dos glóbulos brancos, que se aproveitavam dessa desculpa de que um vírus inofensivo estava agindo para eles mesmos atacarem o próprio corpo, causando todos os problemas.

A explicação foi muito bem feita e persuasiva. O médico aproveitou para passar um documentário, em inglês e legendado em português, que mostrava que essa descoberta revolucionária havia sido feita em Cuba, por grandes médicos em centros de biomedicina de última geração. Mas, por culpa dos Estados Unidos que pagaram e bloquearam o acesso a informação, esse conhecimento não chegou aos países pobres e com população bestializada, como o Brasil, para que as grandes multinacionais pudessem lucrar com a venda de remédios terríveis, como a aspirina, a dipirona e a vitamina C.

Aquilo era demais para o homem. Ele sempre soube que os americanos eram capazes disso, pois os seus professores de primeiro se segundo grau explicaram isso várias vezes a ele e aos colegas de classe, mas saber que isso agora tinha influência direta no seu corpo era demais.

Em lágrimas de revolta, ele suplicou ao médico qual era o seu prognóstico, qual seria o tratamento para livrá-lo de tamanho sofrimento injusto.

A resposta do médico foi taxativa: Devia-se eliminar completamente os malévolos glóbulos brancos do corpo dele o mais rápido possível, com um tratamento demorado e caríssimo, que só ele, o médico, sabia aplicar. Por ser um tratamento revolucionário, o custo era muito elevado, mas afinal, quanto que vale a saúde?

Convencido de que essa era a solução o homem fez as contas de cabeça. Se ele vendesse o carro, a casa e pegasse um empréstimo no banco, ele poderia pagar a metade do tratamento. Depois ele se viraria para arranjar o resto. O médico aceitou a proposta, desde que a metade do pagamento fosse feita a vista na primeira seção. Os outros 50% ele permitiria que o homem pagasse depois do terceiro mês de tratamento.

Porém, não houve necessidade de pagamento da outra metade pois o homem morreu após um mês.

O médico famoso, que foi ao enterro, disse para a família que ele fez o que pode, mas como ele foi procurado somente quando a doença já era avançada pouco se pôde fazer. Ele, inclusive, estava liderando uma campanha na televisão, para a vacinação das crianças recém nascidas contra os glóbulos brancos, pois só assim era garantido que aquela situação jamais ocorreria de novo. A família ficou muito emocionada e agradecida ao médico, mas, devido ao fato de estarem morando de favor e sem carro, não poderiam ir pessoalmente ao consultório lhe entregar um lembrança por tamanha dedicação. O médico não se fez de rogado e explicando em detalhes quais a linhas de ônibus que passavam na frente do consultório, insistiu para que a família fosse lá entregar a lembrança. Afinal, ele sofreu muito com a perda desse tão bom paciente que não custava abrir uma exceção e recebe-los sem hora marcada. Devido as dificuldades da falta de dinheiro e de carro, a família do homem só pode ir ver o médico com a lembrança passados dois meses. Ao chegarem na sala de espera souberam pela secretária que o médico famoso não estava. Ele havia ficado doente e foi se tratar no Estados Unidos. Só voltaria na outra semana.

Conclusão

 Essa estória absurda acima é, nada mais nada menos, do que a realidade da segurança pública do Brasil atual, onde o homem doente é o Brasil. Essa doença é a criminalidade que foi aumentando até o ponto de não permitir que grande parte da população viva normalmente, pois o medo de sofrer um crime é mais do que uma mera possibilidade. Como é próprio do brasileiro, as pessoas só começaram a se preocupar com o assunto quando os índices criminais bateram mais de 50 mil homicídios por ano, tirando a vida de mais de um milhão de pessoas em 20 anos, devastando famílias e regiões inteiras do país.

Depois, quando a situação estava insuportável, surgiram os “especialistas” em segurança pública que com a cobertura maciça da mídia começaram a vender o papo furado “da luta de classes” como causa e efeito da criminalidade e, dando como solução, a “política de direitos humanos” onde o foco das ações de governo para combater a criminalidade e os seus efeitos não eram mais a população de bem nem as vítimas dos crimes, e sim os criminosos. Com isso se inverteu o problema e os valores. Aliado a isso, começou-se uma campanha de afrouxamento das leis e do cumprimento de penas que praticamente acabaram com a relação crime-prisão-pena. Com os altos índices de impunidade, a reincidência, filha maldita da própria impunidade, virou a regra e não a exceção.

Para acabar de arrematar, agora os “especialistas midiáticos ideológicos” estão com a nova solução mágica para diminuir a criminalidade: Extinguir a Polícia Militar.

Assim como na parábola acima, esses picaretas travestidos de grandes sabedores de uma área complexa da vida humana, só vão parar quando matarem o paciente. Depois, para não assumirem o erro culparão outros, o sistema, qualquer um, pelo seu fracasso anunciado.

Está na hora do Brasil acordar do sono da morte e parar de ouvir gente de má fé, hipócrita e sem coerência, e voltar a sua atenção para o combate à criminalidade no “médico antigão” do texto acima, no caso, os policiais, pois eles que combatem o crime, prendendo e morrendo nas ruas é que sabem o quanto é importante o primeiro passo para combater qualquer doença: Fortalecer o seu sistema imunológico, principalmente os seus glóbulos brancos.

Olavo Mendonça.

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