A hipocrisia do mundo moderno

O homem moderno parece ter duas cabeças: afirma com uma o que nega com a outra. Da teologia à embriologia, da moral sexual à nutrição, não há nada que escape ao cacoete moderno de ser contraditoriamente hipócrita.

Por Nicholas Senz — Um dos engenheiros de software do Google enviou a toda a companhia um memorando em que afirmava que a empresa criou uma “câmara de eco ideológica”. “O Google”, escreveu ele, “possui uma série de preconceitos, e a ideologia dominante tem silenciado a discussão honesta sobre estes preconceitos”. A resposta do Google às acusações do memorando consistiu, por um lado, em rebatê-las por palavra, proclamando o seu comprometimento com a diversidade e o diálogo aberto, e em confirmá-las, por outro, demitindo o engenheiro que as formulou.

Se você não enxerga a ironia da situação, então você tem provavelmente a mesma mentalidade que a “ideologia dominante” das universidades, dos meios de comunicação e das corporações — em particular, da indústria tecnológica — de hoje. Mas se você foi capaz de perceber a inconsistência da resposta do Google, então é provável que já tenha notado uma certa epidemia de “duplipensar”. (Termos orwellianos talvez se tenham desgastado pelo uso, mas isso só foi possível porque eles são cada vez mais apropriados à nossa realidade.)

A controvérsia em torno do memorando do Google é só mais um exemplo de como o mundo nos diz que devemos ser tolerantes e acolhedores, permitindo que todas as opiniões e estilos de vida sejam expressos e vividos… a menos que a sua opinião ou estilo de vida entre em conflito com os temas dominantes da sociedade secular, em cujo caso você será publicamente desprezado, e o seu sustento e a sua honra correrão sérios riscos.

Querem fazer-nos crer, como diz uma recente representação do seriado Sherlock Holmes, que Deus não passa de “uma fantasia absurda, concebida para dar alguma oportunidade profissional ao idiota da família”. E quem o diz são as mesmas pessoas que sugerem, com toda seriedade, ser possível que estejamos vivendo em uma “simulação” do tipo Matrix.

Insistem que a criança no ventre materno não é uma pessoa humana, embora já tenha orientação sexual firmemente determinada, mas não a própria “identidade de gênero”. (Trata-se, é claro, de um conjunto metafisicamente inconsistente de afirmações; mas, dizem-nos, a metafísica foi destruída de vez pelos filósofos iluministas, ainda que não nos expliquem como, exatamente, eles lograram tamanho feito.)

Dizem-nos que, para sermos saudáveis, precisamos sacrificar-nos, ter disciplina, que precisamos ser, efetivamente, atletas em treinamento (ou, como diríamos em grego, “ascetas”): nada de gordura saturada; nada de xarope de milho com altas doses de frutose; distância total dos carboidratos e do glúten; nem pensar em organismos geneticamente modificados ou vegetais com agrotóxico — pelo contrário, coma enormes quantidades de couve e de pescado sustentável e você viverá para sempre.

Na verdade, dizem eles, deveríamos sobretaxar ou banir por completo as chamadas “porcarias”, e é assim que, de uma hora para outra, o preço do seu refrigerante aumenta em 12%. No entanto, à mera sugestão de que outros tipos de apetite devem ser moderados e controlados — como, por exemplo, o apetite sexual, que afeta não apenas a saúde e o bem-estar das pessoas envolvidas no ato, mas tem ainda o potencial de gerar ali mesmo um novo ser humano — responde-se com uivos de: “Deixe o governo fora do meu quarto!” E quando perguntamos por que razão o governo teria o direito de se intrometer na sua cozinha, mas não no seu quarto, a única resposta que podemos esperar são zombarias.

A expressão “hipocrisia” é frequentemente mal empregada, ou, melhor dizendo, utilizada de forma imprecisa. Um “hipócrita”, na maioria das vezes, é visto como alguém que não vive à altura dos ideais que ele mesmo professa; essa caracterização, no entanto, parece insuficiente. Ninguém segue com perfeição o próprio código moral. De fato, todos somos pecadores, necessitados da misericórdia e da graça de Deus. Ora, se essa definição de “hipócrita” abrange todo o mundo e não é capaz de descrever algum atributo constitutivo da natureza humana, então ela não é lá muito útil.

Mas se acrescentarmos a ela um outro elemento, as coisas começarão a ficar mais claras. Um hipócrita, com efeito, não é apenas o sujeito que diz: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. O hipócrita é aquele que diz: “Eu tenho permissão de fazer isso, mas você não”. Os hipócritas aplicam às outras pessoas critérios distintos dos que eles aplicam a si mesmos. Não se trata, portanto, de fracassar em observar as próprias regras; é uma questão de querer submeter os outros a um conjunto de regras diferente daquele a que o hipócrita mesmo se submete.

É justamente isto que verificamos nos exemplos acima. Em todos eles, as pessoas pensam ser perfeitamente coerente agir de forma incoerente. É em nome do diálogo aberto que o Google manda um funcionário embora, pelo simples fato de ele querer ter um diálogo aberto. Chamam a Deus uma “ideia absurda”, e ao mesmo tempo propõem como modelo explicativo do mundo uma ideia flagrantemente absurda. Afirmando que os fetos ainda não são seres humanos, o pensamento social da moda reconhece no feto, não obstante, determinadas características que só um ser humano poderia ter. Exigindo liberdade de toda e qualquer coação externa, o ativista pretende policiar nos mínimos detalhes a dieta alheia.

Ora, a raiz dessa hipocrisia não é senão o desejo de controlar os demais. Os hipócritas desejam que todos cumpram a cláusula do contrato, enquanto eles mesmos vivem livres e desimpedidos de qualquer obrigação. Os hipócritas tendem a usar o “plural não inclusivo” — noutras palavras, quando dizem “nós”, o que na verdade estão dizendo é: “vocês todos, menos eu”. A classe política, só, poderia oferecer-nos uma multidão de exemplos: há os que se opõem à isenção de impostos para ricos e, ao mesmo tempo, fazem de tudo para contornar a taxação e, assim, pagar muito menos do que o “povo trabalhador” que eles dizem representar; há os que elaboram leis de seguridade médica que oprimem a população com planos de saúde obrigatórios e impagáveis, reforçados ainda por cláusulas penais contra os inadimplentes, planos porém de que eles mesmos estão isentos; há os que dão a volta no mundo em seus jatos particulares, denunciando a emissão de gases e o desperdício de recursos; há ainda os que negam a concessão de cheques escolares e tecem loas ao sistema público de educação, quando os seus próprios filhos frequentam colégios particulares caríssimos. E a lista poderia crescer indefinidamente.

Em nome da liberdade, impõe-se a conformidade. É a “ditadura do relativismo” de que falava o Papa Emérito Bento XVI. É a ascensão da classe dos tecnocratas, que modelariam uma humanidade nova, enquanto eles mesmos permanecem intocados, inalterados, desimpedidoscomo já prenunciava C. S. Lewis em A Abolição do Homem. Só uma visão alternativa, que arraste consigo os corações com a força da verdade, do bem e da beleza, pode fazer frente a tudo isso: uma visão do homem como imagem de Deus, digno em si mesmo, valioso, inestimável, criado para unir-se ao seu Criador. Assim entendido, o homem não pode ser controlado ou manipulado; antes, tem o direito de amadurecer, o que não vai acontecer enquanto o obrigarem a viver à base de couve.

Padre Paulo Ricardo.

Fonte: Crisis Magazine | Tradução e adaptação: Equipe CNP.

Post original AQUI.

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