E eles o crucificaram! Et crucifixerunt eum!

Eles. Mais imediatamente, os soldados romanos, que martelaram desapiedadamente os cravos, transpassando os punhos e os pés adoráveis do Salvador, e fixando-os na cruz. Embrutecidos nas desordens de toda espécie, num exército falho do santo temor de Deus, habituados a relaxar as tensões nervosas das campanhas militares na ferocidade com que tratavam os inimigos vencidos, tinham os soldados do “Império”, como um regalo de festa, a faculdade que lhes outorgavam os chefes de seviciarem, com sabor sádico, uma vítima indefesa, já condenada à morte.

O infeliz sentenciado era, antes de tudo, submetido à flagelação. Suplício tremendo ao qual, frequentemente, sucumbiam suas desgraçadas vítimas. Ficava o condenado à mercê da brutalidade bestial de homens grosseiros, robustos no físico e aviltados na alma. Decidia o fim do suplício ou a morte da vítima, ou o cansaço dos verdugos.

Não foram mais compassivos os esbirros (oficiais de justiça) a cuja discrição entregou Pilatos a Jesus, “Jesum tradidit voluntati eorum” (Luc. XXIII, 25).

Eis que o Bom Jesus, ao ser estendido sobre o madeiro, é uma chaga viva, renovada pela violência com que lhe despiram de suas vestes. O Santo Sudário de Turim, no mudo é eloqüente depoimento dos fatos, testemunha as atrocidades praticadas sobre a sagrada humanidade do Filho de Deus: A seqüência ininterrupta das chagas, que pontilham todo o Corpo sacrossanto do Salvador, diz-nos da freqüência e violência dos golpes do flagelo, dotado de extremidades metálicas, que abriam sulcos na carne do Salvador, como o arado vai sulcando a terra.

Como se tão desumana crueldade não bastasse, ainda por escárnio e irrisão, plantam-Lhe na cabeça a coroa de espinhos.

Foi nesse estado lastimável, adornado com a púrpura de seu próprio Sangue e com o diadema de sua dolorosa realeza que o estenderam sobre a cruz e terminaram sua tétrica missão, crucificando-O.

A soldadesca infrene, vã, boçal e tremendamente feroz foi, sem dúvida, a vingança da carne contra Aquele que viera sublimá-la na castidade perfeita, parificando os homens aos anjos. Decaído de sua glória, não podia o anjo das trevas tolerar fosse seu lugar ocupado pelo homem cuja virtude domina os ímpetos da concupiscência. E armou a brutalidade do soldado romano contra o Cordeiro Imaculado, culpado de remir o homem, arrancando-o do lodaçal do vício e elevando-o à sociedade dos espíritos celestes. Pois, com humilhantes e atrozes padecimentos, suportados no seu Sagrado Corpo, purificou Jesus, superabundantemente, nossas almas de nossas culpas, e proporcionou, até ao mais miserável pecador, a graça de alçar a cabeça e apresentar-se ao Pai Celeste: «Surgam et ibo ad Patrem meum – Levantar-me-ei e irei ter com meu Pai (Luc. XV, 18).

Abençoada Paixão de Jesus Cristo. «Mentita est iniquitas sibi ›› (Salmo XXVI, 12). Armou o demônio contra o Salvador os furores do averno e teve como resultado sua própria derrota. ‹‹ Adoramus Te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum- Nós Vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e Vos bendizemos, porque com Vossa Cruz remistes o mundo ››.

Os soldados eram subalternos. Cumpriam ordens. Estavam a serviço da autoridade romana. São homens do governador romano, Pôncio Pilatos. Esbirros e procônsul, fazem parte dessa área imensa da Humanidade, imersa nas trevas do paganismo, na ignorância do Deus Verdadeiro. São uns a ralé da abjeção a que desceu a natureza humana após o pecado. De casta superior, com certa nobreza e cultura, não é Pilatos menos abjeto no papel assumido ou aceito no Drama do Calvário. Encarna ele essa mentalidade pagã do homem decaído da excelência a que fora exaltado na Criação, e, pois, voltado sobre si mesmo, dominado pelo egoísmo.

Por natureza servo de Deus, aperfeiçoa-se o homem na medida em que aprimora seu devotamento ao Senhor dos Céus e da terra. Pois faz ele parte desse concerto admirável em que todas as criaturas formam coroa em torno da Sabedoria e Santidade inefáveis dAquele que é a fonte de todo o bem e de toda a verdade, para louvá-lO incessantemente, proclamando sua excelsa e altíssima transcendência. Mas, seduzido pelo demônio, que blandiciosa e sorrateiramente lhe açula a vaidade e o amor próprio, rejeita o homem o seu lugar na harmonia dos seres. Quer ser ele também um deus, decretando os limites do bem e do mal. Senhor e não servo da ordem moral. E tornou-se um paradoxo. Os princípios elementares do bom senso ditam-lhe ainda algumas normas de justiça, subordinadas, porém, ele aos seus interesses. Pois, sem esperança de uma vida futura, concentra seus planos na obtenção da bem-aventurança na terra, feita de vanglória e prazeres. Daí a busca ávida das riquezas e a caça do poder, dois elementos indispensáveis para alimentar sua vaidade e sensualidade. Neste afã inglório em torno de uma quimera, sente o homem seus limites, e passa a existência em sobressaltos: teme perder o domínio e a fortuna. E para conservá-los desce às ultimas vilanias.

Por detrás de Pilatos está Tibério César, cujo olhar frio percorre suspeitoso a vastidão do Império receando um rival que lhe dispute o cetro. Nas mãos de Tibério está a sorte de Pilatos. E quem limitou seus horizontes ao mundo presente, sabe tudo quanto isso significa. Seu orgulho fazia-o desprezar o judeu. Por isso e, mais ainda, pela convicção da inocência de Jesus Cristo – pois sabia-o vítima da inveja dos sacerdotes e anciãos do povo – e pela impressão de superior majestade do Divino acusado, Pilatos empenhou-se por absolvê-lo. «Nullam invenio in neo causam» (Jo. XIX. 4), declara ao povo aglomerado junto ao Pretório e aguilhoado pelos sinedritas. «Não encontro razão para condená-lo». E isso, após longo processo em que se sucederam os expedientes mais abjetos, ditados pela covardia humana, que teme a única saída honrosa: o cumprimento do dever, a absolvição do inocente. Pois, apesar do reconhecimento público e solene da inocência do Salvador, Pilatos cede, e o condena a morte. São Lucas sublinha a dupla iniqüidade envolvida na sentença com que o Procônsul condenou Jesus e absolveu a Barrabás. Diante do tumulto provocado no povo pelos príncipes dos sacerdotes e demais sinedritas, Pilatos lançou a sentença, fazendo-lhes a vontade: absolveu, diz o Evangelista, aquele que fora preso por causa de homicídio e sedição, pois que o povo o pedia, e a Jesus entregou-O a morte, de acordo com a vontade de seus inimigos. Injusto absolvendo o culpado, mais injusto condenando o inocente.

É que para Pilatos, como para os que desconhecem a transcendência do homem, não há uma justiça objetiva. Há umas normas de convívio humano que, por mais necessárias que sejam, jamais se antepõem aos interesses próprios. Justo será o juiz desde que a sentença não lhe acarrete a desgraça ou lhe diminua seu bem-estar. Um aceno a semelhante possibilidade bastou para dobrar a aparente integridade do Procônsul. «Se absolves a este não és amigo de César, porque todo o que se faz rei contradiz a César» (Jo. XIX, 12). Tais palavras avivaram na fantasia do governador a figura de Tibério César: sua inflexibilidade em afastar friamente de seu caminho quaisquer opositores, ainda mesmo seu parente mais chegado. E temeu pela sua posição. E entre esta e a justiça, não tinha dúvida o pagão cético e sibarita em sacrificar a justiça e salvar o alimento de sua vaidade e o fundamento de sua fortuna. Uma palavra, uma hipócrita purificação das mãos, e sobre o sangue inocente abafam-se uns tênues restos de remorso de consciência.

Essa a mentalidade pagã. Por isso, não lhe interessa a verdade. A Jesus, que anunciava o Reino da Verdade, Pilatos pergunta entre intrigado e displicente: Que é a Verdade? – «Quid est veritas?» (Jo. XVIII, 38). – Pergunta e não espera a resposta. Esta pouco se lhe dá. Aos que vivem no circuito fechado desta terra, são incômodos os princípios transcendentes que regulam a urdidura das coisas humanas. Pois escapam ao controle dos limites das faculdades do homem. Obedecem aos desígnios de Deus. E o pagão quer ser ele mesmo o senhor de seu destino. Nem espera, nem confia na justiça da Providência.

Pilatos pergunta a Jesus: Quid est veritas?

Na mentalidade pagã floresce a rebeldia do anjo das trevas. Que nisto constituiu sua revolta: sacudir a paternal direção com que Deus dispõe todas as coisas para sua glória e o bem de sua criatura. Quis ele ser como Deus, senhor absoluto, ele mesmo, de seu destino. Precipitado do Céu pela fidelidade dos anjos bons, busca sua vingança, inoculando no espírito do homem a mesma louca pretensão de ser ele o árbitro de toda ordem moral. Que outra coisa não significa a promessa do tentador aos nossos primeiros pais: «Se comerdes do fruto desta arvore, não só não morrereis, mas sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal»(gen. III, 5). Em outras palavras, sereis por vós mesmos os árbitros da ordem moral. Jesus, que veio restaurar a ordem transtornada pelo pecado, não poderia não ter entre seus algozes os herdeiros daquela primeira nefanda impiedade, em que a criatura ousou pretender substituir-se ao Criador. Pilatos, na Paixão de Jesus Cristo, age como representante destes herdeiros de todos os tempos. Por isso, para lição nossa, é seu nome lembrado na profissão de Fé dos que rejeitam a impiedade pagã, porque abrem seus corações, reconhecidos, ao Padre Nosso que está nos Céus e por nós vela amorosamente.

A bestialidade dos soldados romanos, sim. O naturalismo orgulhoso do gentio, sem dúvida. Não são, porém, esses os que arcam com a maior responsabilidade no maior crime da História. Atesta-o o protagonista dessa tragédia, que se irradia pelos séculos. Ao Procônsul, atônito com seu silêncio, declara o Salvador: «Aquele que me entregou a ti responde por um pecado maior – Qui me tradidit tibi maius peccatum habet» (Jo. 19, II). O que me entregou a ti, o povo judeu, especialmente sua classe dirigente, o Sinédrio, os anciãos, os príncipes do povo, os doutores da lei, e à frente de todo o povo, a casta sacerdotal. Não fora a ação decisiva dessa chusma de apóstatas, talvez o povo se comovesse quando Pilatos Ihes apresentou o Salvador desfigurado pela flagelação e coroado de espinhos, e não prorrompesse no pedido histérico da sentença capital.

Caifás: O acusador.

Os príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo! Já não estamos entre a gente aviltada pela sordidez de uma vida grosseira e viciada, nem nos havemos com o mesquinho pragmatismo pagão. Estamos, agora, com  o povo eleito. Para o gentio, Jesus era um estranho; para o judeu, membro da família. Há toda a malícia do sacrifício da inocência na sentença pronunciada por Pilatos e na ferocidade com que os esbirros a executaram. O judeu acrescenta-Lhe a hediondez do parricídio. Pois, diz o Senhor no Levítico, ele era o povo escolhido. «Eu serei vosso Deus, e vós sereis meu povo»(Luc. 26, 12). Povo de predileção, objeto de um amor providente em todas as fases de sua história. Povo a quem governava através de seus profetas e mantinha escoimados das crendices e superstições que maculavam as religiões das outras gentes. A aliança de Deus com o povo de Israel era um pacto sempiterno (Is. 55, 3).

O povo eleito tinha uma missão. Competia-lhe a apresentação ao mundo do Messias, o Salvador, por quem suspiravam as nações, desde a promessa misericordiosa do Paraíso terrestre. E eis que esse povo, no momento culminante de sua história, quando tem no seu seio seu Rei, seu Senhor, o Messias, o Salvador do gênero humano, nesse momento exato de realizar sua missão providencial, quando devera conclamar a todos os povos a adoração do enviado das nações para a redenção do mundo, nesse momento, esse povo apostata. Rejeita e repele o Enviado de Deus. «Nolumus hune regnare super nos – não queremos que este reine sobre nós» (Luc. XIX, 14). E apostata, impulsionado pela hierarquia sagrada. É Caifás, o sumo sacerdote, que, na reunião do Sinédrio após a Ressurreição de Lazaro, para encerrar as dúvidas e dissipar os temores, propõe a morte dAquele cuja vinda era a única razão de ser do povo eleito. «Não sabeis, interferiu Caifás, que convém que um morra pelo povo, não venha toda a nação a perecer?» (Jo. XI, 50). E desde esse dia ficou assentado que, para o Sinédrio, Jesus devia morrer. E devia morrer por quê? Diz o Evangelho: porque Ele fazia muitos prodígios, e se O deixassem, todo o mundo acreditaria nele (Jo. XI, 47 – 8).

Em outras palavras, Jesus devia morrer porque era o Messias. Devia morrer porque realizava aqueles prodígios anunciados pelos profetas como os sinais indicadores de que chegara o tempo messiânico.

– E quem se empenha por esta morte? – O Sumo Sacerdote. Impossível mais assombrosa cegueira! À frente do povo de Deus, como seu chefe teocrático, estava ali para apresentar o Messias ao mundo: – Ouvi, povos, diria como os antigos profetas, aqui está o Desejado das Nações, o Redentor do gênero humano, aquele por quem fomos constituído seu povo de eleição. Ei-lo aqui. Finda esta nossa missão. Não haverá mais distinção entre judeu e gentio, pois Cristo Jesus congrega todo o mundo num só povo de Deus!

Oh! Bem que lógica, coerente, na ordem natural da Providencia, semelhante atitude superava os vícios do Sumo Sacerdote. Pois, de há muito, o sacerdócio judaico era infiel ao seu ofício, arrastando o povo na sua infidelidade. A condenação de Jesus Cristo pelo Sinédrio é o termo natural de uma longa obcecação que levou o sacerdócio judaico a não compreender mais a linguagem dos profetas, a perder o sentido real da redenção, a natureza verdadeira do Reino messiânico, de ordem sobrenatural, verificado nas regiões da Graça.

Caifás é o elo mais saliente de toda esta apostasia. Constituído Sumo Sacerdote pelo Procônsul Valério Graco, a origem espúria de seu pontificado está a indicar o conceito que fazia de sua missão religiosa. Seu servilismo aos prepotentes do momento, acentua-o seu longo pontificado de 18 consecutivos anos, que ainda se alongaram em outros membros da família.

Diz Santo Agostinho que dois amores construíram duas cidades: o amor próprio até o desprezo de Deus é autor da cidade terrena; e o amor de Deus até o desprezo próprio edificou a cidade celeste. Ou seja, pede-se um devotamento total a todo aquele que almeja a cidadania celeste. Semelhante dedicação perfeita exige-se especialmente daqueles que, por dever de ofício, estão votados as coisas de Deus: os sacerdotes. Por isso, a infidelidade do ministro sagrado torna-o vil e abjeto aos olhos de Deus e causa da apostasia de todo o povo. Pois, Caifás levou ao ápice a infidelidade sacerdotal. Saduceu, era, como os da seita, materialista. Não crendo já na imortalidade da alma, seu ideal se limitava as ambições terrenas: glória que alimentasse sua vaidade e riquezas que saciassem sua cobiça.

Com tal sumo sacerdote, não se poderia pensar sequer num Messias sofredor e austero, exemplo e arauto da virtude que repara os desmandos do pecado, como descreviam os profetas o Redentor do mundo. Como poderia, de fato, suportar o sacerdócio de Caifás o novo Rabino a pregar a renúncia às riquezas e à glória? Como poderia ouvir sem arrepios de escândalo a exortação do Divino Mestre: «Que adianta ao homem ganhar o mundo todo se vier a perder sua alma?» (Mat. XVI, 26). Ou, então, a pedir para si uma dedicação superior ao afeto a que fazem  jus os pais junto aos filhos? «Quem amar a sua mãe ou seu pai mais do que a mim não é digno de mim» (Mt. 10,37). Um rabino que ousava, sem pestanejar, expulsar a chicotadas os vendilhões do Templo, todos eles clientes do Sumo Sacerdote?

Não. A cidade do sacerdócio judaico não era a cidade celeste propugnada por Jesus Cristo. Por isso, devia Jesus morrer. Devia morrer porque era fiel a sua missão de Enviado de Deus a pregar a penitência para a remissão dos pecados. Devia morrer, outrossim, porque era amado do povo e punha em risco a popularidade do sacerdócio oficial. Devia morrer sobretudo porque edificava a cidade de Deus, e o sumo sacerdote estava engajado na cidade do homem.

Esta é formada das paixões humanas, todas elas presentes nos tormentos a que foi submetido o filho de Deus. No episódio do Sinédrio, mais especialmente do sacerdócio judaico, age o ódio na sua sanha de extermínio. A violência com que arrastam a multidão na gritaria a pedir a crucifixão com o fim de extorquir da cobardia do Procônsul a sentença de morte é fruto desse ódio que deseja ver esmagado o rival detestado. O mesmo ódio reponta na cena selvagem com que, após a sentença do Sinédrio, os chefes religiosos incitaram os esbirros do palácio, aos insultos mais ignóbeis contra a Pessoa adorável do Filho de Deus. Partiram cobardemente aos socos e bofetadas, contra Jesus indefeso, cuspindo na sua face sagrada. Quando magistrados descem de sua dignidade para se misturarem à canalha vã é porque o ódio já não guarda reservas. Não tem limites.

Caifás: Ódio ao Messias.

Um dos meios mais eficazes de que se serve o anjo das trevas para desviar as almas do caminho do Céu e levá-las a aceitar uma falsificação da Religião Verdadeira. Daí o ódio especial com que persegue o demônio aqueles que lhe descobrem seu jogo infernal.

O sacerdócio judaico iludia o povo com as aparências de fidelidade à revelação de Moisés, à palavra de Deus. Jesus denunciou-lhe a hipocrisia. E assim despertou o ódio de morte. Precisa morrer, dizia Caifás, aliás perdemos todo o povo. Pois o essencial é que o povo não perceba nossa hipocrisia, nossas falsificações.

– Esse ardil do demônio é de todos os tempos. Consola-nos que a vitória de Jesus Cristo também é de sempre. O véu do templo, na ocasião da morte de Jesus Cristo, rasgou-se de alto a baixo anunciando o fim do Velho Testamento e igualmente a vitória plena, completa, total de Jesus Cristo contra todas as insídias do demônio.

Ó meu Jesus! Neste dia solene e trágico em que sois elevado ao patíbulo infamante da Cruz, convém que se faça toda justiça. Pois só a Justiça condiz com a Verdade, e Vós viestes para instaurar o Reino da Verdade e dar testemunho da Verdade. Não foram somente eles que Vos crucificaram. Fomos também nós. É o que dizemos todos os dias na nossa profissão de Fé:  ‹‹ Por nossa causa e por nossa salvação desceu dos Céus, padeceu e foi crucificado sob Póncio  Pilatos » .

Sim. Eles o crucificaram. Eles, os gentios e os judeus. Mas, nós também o crucificamos. Nós, cristãos. Nós, que com Ele professamos ter o mesmo pensamento – homo unanimis (Salmo 54, 14). Nós, que com Ele compartilhamos o pão à mesma mesa. Nós que somos seus familiares, seus amigos: «Non dicam vos servos sed amicos». (Jo. 15, 15). Pois, nós também o crucificamos.

E se nos perguntarem quando o crucificamos, respondemos com o argumento com que Santo Agostinho convenceu os judeus de seu crime. Eles O crucificaram, diz o Doutor da Graça, quando diante de Pilatos vociferaram  o “crucifige”, extorquindo do Procônsul a sentença de comodismo, nós não o reconhecemos diante do mundo que lhe é hostil.

Há, na Paixão de Jesus Cristo, uma figura singular, misto de intrepidez e medo, de dedicação e vilta. É São Pedro, o Príncipe dos Apóstolos. Convencido de seu valor e valentia, faz ao Mestre os mais ardentes protestos de fidelidade. “Ainda que todos te abandonem – assegura ele a Jesus – eu nunca te abandonarei”. “Ainda que todos se escandalizem por tua causa, eu jamais me escandalizarei” (Mt. 26, 33). Pois estou pronto a ir até o cárcere e mesmo a morte, e “ainda que seja necessário morrer contigo, não te negarei”. E no Jardim das Oliveiras, foi o único que se aventurou a defender o Mestre com a espada. Decepou mesmo o orelha direita de Malco, ímpeto contido pela mansidão do Salvador.

Depois, foi a fase da vilta. Como os demais apóstolos, abandonou o Mestre nas mãos dos seus algozes e fugiu covardemente. Mais. No átrio do Palácio do Sumo Sacerdote, misturou-se aos fâmulos da Casa, mais ou menos como quem é estranho ao que ali se passava. E bastou que uma empregada – “ancilla ostiaria”, diz São Joao, a porteira – ousasse denunciá-lo como discípulo de Cristo, para que sua reação fosse imediata: «Não conheço esse homem» (Mat. XXVI, 72). E confirmou sua negação com juramento e imprecações: «coepit anathematizare et iurare quia non novisset hominem» (Mc. XIV, 71). Não conheço esse homem! Como mentes, Pedro, assim desavergonhadamente? Não conheço esse homem… Mas, não foi Ele por quem há pouco juravas dar a liberdade e mesmo a vida.

Pedro garante que não negará Jesus. Poucas horas depois ele quebraria a promessa três vezes.

Não conheço esse homem! Mas não foi Ele que te fez seu discípulo, que te prepôs ao colégio apostólico, a cujas glórias assististes no Tabor, que frequentemente conduzistes em tua barca, que hospedavas em tua casa?

– Como não conheces esse homem? Eis o perjuro. E como as quedas se sucedem vertiginosamente, não trepida Pedro de usar o termo desprezível, «esse homem», como se fora qualquer anônimo da rua, sobre o qual podem pesar todas as suspeitas, sem que se comovam as pessoas de bem.

Eis a espada que mais feriu o Coração do Divino Mestre. Se meu inimigo, disse Ele pelo Profeta, me amaldiçoasse, eu o suportaria. Mas, tu que pensavas comigo, que comias comigo… (Salmo V, 15).

Os pagãos viviam nas trevas, sem a luz da Fé. Os judeus há muito haviam falsificado a Religião verdadeira, com saudades das bolotas dos porcos, a mamona da iniqüidade. Uns e outros estavam em campo oposto ao do Mestre adorável. Mas Pedro, objeto das predileções de Jesus, a quem acompanhou ao Jardim das Oliveiras, que fora escolhido para testemunha de sua oração angustiosa, que dera todas as garantias de sua dedicação, esse agora o nega vilmente, atemorizado por uma mulherzinha, porteira de palácio? Acareadas as vilanias humanas ocorridas no decurso da Paixão de Jesus Cristo, a de Pedro leva a palma.

Pois em toda a tragédia da Paixão de Cristo, Pedro é quem melhor nos representa. Também nós fomos agraciados pela insondável Bondade do Salvador, que, sem nenhum mérito nosso, nos chamou para a luz inestimável da Fé, para o seio de sua Igreja, para filhos adotivos de seu Pai Celeste, para membros de sua família, para participantes de sua natureza divina. Ele que nos alimenta com sua carne e seu sangue. Pois, apesar de todos esses benefícios, outras tantas demonstrações de sua paternal bondade, nós participamos da vilania de São Pedro. Diante do mundo, com seu fausto, sua glória efêmera, com a ameaça de um ostracismo sem maiores conseqüências, nós já esquecemos todos os favores da munificência divina, vergonhosamente renegamos nossa condição de cristãos.«Non novi hominem».

Não é acaso renegar a Jesus Cristo, o silenciar diante do ceticismo diluído no pancristianismo, ao sabor de uma sociedade frívola desejosa de uma Religião sem compromissos?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo, o não combater o erro e as ambigüidades doutrinárias que dessoram e fazem definhar a Fé, base de toda verdadeira vida cristã?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo o ajustar-se aos costumes e aos trajes que alimentam a sensualidade e são a negação da virtude cristã?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo aceitar uma igreja nova, sem contornos definidos, dentro de um ecumenismo vago e sem carácter, pelo temor de ser apontado como causa de divisão entre os fiéis?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo o fazer-se arauto dos direitos humanos, esquecendo os sacrossantos direitos de Deus?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo reduzir sua obra redentora a mera libertação de reais ou supostas opressões de ordem econômico-social?

Não é acaso renegar a Jesus Cristo a preocupação excessiva com a felicidade e os bens da terra, que faz esquecer o Reino do Céu e a salvação da alma?

Quem de nós pode sinceramente isentar-se destas ou de outras negações de Jesus Cristo? Sim. Na pessoa de São Pedro estávamos nós a dizer: Non novi hominem. Não conheço a Jesus Cristo.

Oh! meu Bom Jesus… Apesar de minhas misérias, de minha negra traição ao vosso Nome, às promessas de meu Batismo, à vossa Doutrina e ao vosso espírito, ouso apresentar-me a Vós, ouso vir aos vossos pés e me aproximar de vossa Cruz. Pois ela encerra o mistério do amor com que me amais, e este é infinito, supera toda a minha malícia, por mais vã, odiosa e imensa que seja. O estado em que Vos vejo, meu bom Jesus, revestido com a púrpura de vosso Sangue, que jorra de todo vosso Corpo Sacrossanto, com a cabeça coroada dessa cruciante coroa de ignomínia, privado de todo movimento pelas cadeias que vos fixam nesse patíbulo infamante, esse estado, meu Bom Jesus, é o que eu mereci por meus pecados. E Vós, na vossa misteriosa, insondável misericórdia, conhecendo minha fraqueza para suportá-lo, e como me seria inútil, dados os limites de minha natureza, Vós me substituístes e Vos apresentastes à inexorável Justiça Divina para reparar o que por mim seria irreparável.

Compreendo agora, meu Salvador, todo o alcance da frase de Vosso apostolo: «Dilexit me et tradidit semetipsum pro me – Amou-me e entregou-se a morte por mim» (Gal. II, 20). Sim, meu Bom Jesus, Vós me amais com amor inefável. Se vossa dedicação por mim vos levou ao martírio da Cruz, que receio posso ter eu de que me não recebereis, à vista dos muitos e hediondos pecados que deformam a minha alma e a tornam indigna de vossa presença? Sei que vosso amor supera minha indignidade e que vosso Sangue Divino pode purificar-me de todos os meus crimes. Por isso, confio e me apresento a Vossa Misericórdia.

Mas, Senhor, pois que me amastes tanto, ouso pedir-Vos que me deis a graça de Vos amar também eu, de corresponder ao Vosso amor e de não pecar mais. Sim, meu Bom Jesus, não pecar mais. Sou tão fraco, que nem sequer o que há de mais lógico, belo, natural e confortador como é amar-Vos, nem isso sei ou posso fazer. Por isso, vinde, Senhor, em meu auxilio, e dai-me a graça de amar-Vos e de não pecar mais.

Que vossa Mãe e Senhora das Dores, que assiste ao vosso martírio e nele participa, que a Senhora das Dores interceda por mim. E já que A constituístes minha Mãe, que Ela fixe no meu coração indelevelmente vossas chagas sacrossantas, que, em toda parte, lembrem vosso amor por mim e a hediondez do meu pecado, que vos reduziu a este estado lastimável de um farrapo humano. E que esta lembrança seja eficaz para determinar no meu coração um amor ardente por Vós e pelas almas que remistes com Vosso Sangue.

Santa Maria na cruz com Jesus. Que tenhamos a sua fidelidade e coragem.

 Sancta Mater istud agas: Crucifixi fige plagas Cordi mea valide.

Fac ut ardeat cor meum In amando Christum Deum Ut sibi complaceam. 

 Santa Mãe do meu Senhor, dai-me a graça de trazer indelevelmente gravadas no coração as chagas do Divino Crucificado. Fazei que meu coração se inflame no amor de Jesus Cristo para que com Ele sempre me conforme. Amém. Assim seja

Fonte: Fratres in unum.

Fotos: Filme a Paixão de Cristo.

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