Decretos, ordens e lockdown. Os dilemas da PM na pandemia

Tenho recebido, de diversas pessoas, policiais e civis, preocupações sobre a atuação das policias militares durante o estágio atual da pandemia de coronavírus que completa o seu primeiro ano. Ao mesmo tempo, tenho visto e recebido em grupos nas redes sociais vídeos de policiais militares, policiais civis, fiscais e guardas municipais agindo de forma contundente para cumprir os decretos de lockdown (1) e toque de recolher (2) publicados por governadores e prefeitos em todo o Brasil. Acredito que este seja o momento de se fazer, ou de se iniciar, uma discussão sobre esse tema que tem tomado uma importância cada vez maior a cada dia, na medida em que os números de doentes, óbitos e internações aumentam devido a uma nova onda infecciosa causada por uma mutação do vírus descoberta em Manaus (3) e que os números de crimes, contravenções, depressões, conflitos familiares, consumo de drogas e suicídios aumentam na mesma proporção, em grande parte devido as essas mesmas medidas, além dos números devastadores da contração econômica, desemprego e fechamento de empresas (4) estarem, há muito, com a luz de emergência acesa, sinalizando que a nossa sociedade está no limite.

A atuação de alguns policiais militares durante o cumprimento dos decretos estaduais e municipais de Lockdown está sendo objeto de críticas por parte da população.

As primeiras medidas administrativas que tentavam controlar a proliferação do vírus Corona (5), também chamado de COVID-19, ocorreram no DF há quase um ano, acompanhando medidas idênticas em outros estados e cidades, como o fechamento de escolas, bares, restaurantes, shoppings, cinemas, clubes e até mesmo igrejas (6). Essas medidas drásticas tinham o objetivo de ganhar tempo, ou como se dizia à época, de “achatar a curva” de contaminações, enquanto providências urgentes eram tomadas para que se conseguisse acolher e tratar os pacientes da doença que apresentavam um quadro de virose seguida de inflamação generalizada dos pulmões e de uma trombose estranha que colapsava vários órgãos do corpo do doente, levando-o necessitar de cuidados médicos especiais, como UTIs e, em casos extremos, de respiradores para auxiliar na ventilação mecânica, ou como a imprensa e a população acostumou a chamar, de “intubação”. Com o passar do tempo a pandemia foi gerando a chamada “imunidade de rebanho” com um grande número de contaminados e recuperados. Nesse aspecto o chamado protocolo médico de tratamento profilático e preventivo foram objeto e uma guerra entre gestores, médicos e políticos, gerando um cabo de guerra inédito e sem precedentes. Uma discussão que ainda está longe de acabar. Como medidas de emergência foram contratados mais médicos, hospitais de campanha (7) para atendimento da população contaminada, além da compra de vacinas experimentais (*) em grandes quantidades com o objetivo de se parar a epidemia e de se retornar à normalidade. Porém, a realidade mudou quando em dezembro do ano de 2020 surgiu uma cepa nova do mesmo vírus na cidade de Manaus no Estado do Amazonas (8).

O avanço dessa cepa levou ao colapso da estrutura de saúde da capital do maior estado do norte do Brasil, pois essa mutação fez com que o vírus se tornasse ainda mais transmissível e agressivo, diminuindo a janela de tratamento ativo preventivo de 10 para 5 dias, o que causou a morte de centenas de pessoas. Essa mutação, em pouco tempo, se alastrou pelo país inteiro levando ao aumento das internações e dos casos graves. Com a diminuição rápida dos leitos hospitalares e das vagas de UTI os governadores e prefeitos determinaram uma nova onda de fechamento do comércio (lockdown) além de uma medida inédita, os chamados toques de recolher (9), que fechavam todas atividades não essenciais das 22:00 horas até às 05:00 horas da manhã do outro dia.

Com o agravamento do cenário político (10), com graves conflitos entre os poderes da república (11), e desentendimentos públicos entre a presidência do Brasil e dos governadores e prefeitos (12), o país chegou à beira de uma anomia institucional. Aliado a isso, uma crise econômica sem precedentes com desemprego em massa, levaram o governo federal a reeditar o chamado “auxílio emergencial”, desta vez em um valor bem menor que o primeiro (13).

Com esse cenário de limite de caos, as policias militares, como sempre, foram colocadas na linha de frente da resposta governamental a essa crise de graves proporções, com os policiais continuando a patrulhar as ruas, manter a segurança das áreas urbanas e rurais, prendendo e revistando criminosos 24 horas por dia, com uma carga de trabalho, muitas vezes, maior do que se tinha antes da chegada do vírus. O resultado foram milhares de policiais contaminados e dezenas de óbitos entre as fileiras dos militares estaduais (14), tudo isso enquanto uma parte do funcionalismo público ficava, e fica, protegido em casa em “home-office” (15).

Policial militar do Distrito Federal tem sua última homenagem após sucumbir pelo vírus corona. Imagem se repete em todo o Brasil.

Contudo, os decretos de fechamento dos comércios e das cidades se tornam, a cada dia, mais impopulares, e com isso geram uma grande insatisfação da maioria da população, que se vê impedida de trabalhar e de conseguir o seu sustento, principalmente os mais pobres. Muitos começaram, por desespero de sobrevivência, a praticar uma desobediência aos decretos e a voltar as ruas para trabalhar, sofrendo com isso, penalizações administrativas e até criminais. São essas imagens que hoje circulam por meio da internet, em grupos e redes sociais, com críticas ferrenhas a como alguns policiais militares estão cumprindo essas normas. Aqui cabem algumas reflexões.

Primeiramente, os policiais militares não podem se escusar de cumprir ordens emanadas de autoridade competente. As autoridades em questão são governadores e prefeitos eleitos legitimamente pela própria população e por isso, tem em tese, legalidade de seus atos de ofício, sendo a responsabilidade de tais atos deles próprios, pois não cabe a polícia militar como instituição fazer juízo de valor, a não ser que a ordem seja manifestamente ilegal. A quem cabe exarar sobre a legalidade de tais atos administrativos e legais é o judiciário por meio do Ministério Público. Até que esses atos sejam revogados por sentença eles continuam tendo efeito concreto e cabe a PM cumpri-los.

Contudo, alguns interpretam esses decretos como ilegais pois essas medidas drásticas (lockdown e toque de recolher) só poderiam se decretados pelo Presidente da República por ato legal e submetido à aprovação do Congresso Nacional. Já existe uma sentença judicial no Estado de São Paulo nesse sentido (16). A própria Presidência da República tem esse entendimento e já tomou medidas legais para suspender esses decretos (17).

Atuação das guardas municipais, e de fiscais, muitas vezes, extrapola o bom senso.

Entretanto, enquanto não houver decisão judicial sobre esse imbróglio jurídico cabe a PM cumprir as leis e normas em vigor no país, porém, bom senso e senso de proporções devem ser utilizados sempre. Basta imaginar que, caso os decretos sejam declarados ilegais pelo judiciário, podem acontecer sansões penais e administrativas aos agentes públicos que, por ventura, tenham extrapolado do seu dever legal. Na pior das hipóteses, mais cedo ou mais tarde, esses decretos serão revogados no momento em que a epidemia passar.

Por fim, em meio a uma crise tão grave e de inéditas proporções, cabe a polícia militar a difícil tarefa de cumprir o seu dever de ofício buscando sempre atingir o seu o objetivo maior: servir e proteger o povo brasileiro, mesmo com o risco da própria vida.

Olavo Mendonça.

**- Understanding mRNA COVID-19 Vaccines | CDC

Notas:

1- Lockdown coronavírus: o que é, significado e últimas notícias| Dasa

2- Toque de recolher das 20h às 5h em SP terá mais blitzes e fiscalização: ‘pessoas serão orientadas a ir para casa’, diz SSP | São Paulo | G1 (globo.com)

3- Caos na Pandemia: O que se sabe sobre a nova cepa do Amazonas – Amazônia Real (amazoniareal.com.br)

4- Após pandemia, mais de 700 mil empresas já fecharam as portas no Brasil (globo.com)

5- Coronavírus: veja o que abre e o que fecha com novo decreto no DF (correiobraziliense.com.br)

6- Polícia vai poder fechar igrejas e templos que abrirem no DF (metropoles.com)

7- Hospital de Campanha do Estádio Mané Garrincha é inaugurado no DF – 23/05/2020 – UOL Notícias

8- Colapso em Manaus: Explosão de casos é de nova cepa, diz médico (uol.com.br)

9- Ao menos 16 estados e DF mantêm toque de recolher contra a covid-19 – Notícias – R7 Brasil

10- Reflexões sobre o cenário político brasileiro em tempos de Covid-19 (Civil) – Artigo jurídico – DireitoNet

11- STF determina, e PF prende deputado Daniel Silveira, do PSL, após vídeo com ataque ao STF | Band (uol.com.br)

12- Garcia: Existe entrechoque entre Bolsonaro e governadores, mas não há crise (cnnbrasil.com.br)

13- Auxílio emergencial para 2021: as regras para receber o benefício (gazetadopovo.com.br)

14- Em menos de uma semana, 8 policiais morrem em decorrência da covid-19 no DF (correiobraziliense.com.br)

15- Juízes e defensores conseguem aumento de produtividade durante pandemia – 31/03/2020 – Poder – Folha (uol.com.br)

16-

17- Bolsonaro entra no STF para derrubar “toque de recolher” adotado por governadores contra a Covid-19 (infomoney.com.br)

Fonte da Foto: SSP/PR

One Reply to “Decretos, ordens e lockdown. Os dilemas da PM na pandemia”

  1. Meu caríssimo Major Olavo, como sempre, é o portador do bom senso e que representa o que tem de melhor na valorosa Polícia Militar, como instituição que tem como objetivo servir à população, protegendo-a.

    Parafraseando Thomas Jefferson, o cidadão tem o direito de portar armas para a sua defesa, até mesmo para derrubar tiranos. Esta frase tem a ver com o contexto do artigo na medida em que, a derrubada de tiranos ocorre quando estes extrapolam as leis vigentes, especialmente em prejuízo ao povo, ou quando criam normas totalitárias.

    O cumprimento do dever, o respeito às leis tem a ver com a perfeita correlação entre os usos e costumes que formam o conjunto de normas sociais de convivências que se estatui no Estado de Direito, ou seja a concordância padrão da submissão de todos ou a maioria sob aquele conjunto de normas que denominamos de Constituição. Esta deve representar o mais possível a cultura no sentido dos usos e costumes e o entendimento do que é justo, certo ou errado.

    Contudo, ditadores podem formar novos documentos ao qual todos devem se submeter, como ocorreu na Alemanha nazista, dentre outros casos. Lá, tudo que foi feito estava sob o jugo da lei. nada foi feito de “ilegal”, do ponto de vista estrito da lei, que seguramente não foi nada democrática, mas certamente era imoral, absolutamente imoral. Deve-se obedecer a lei em tais condições? Este, por certo, foi um dos dilemas discutidos nos julgamentos de Nuremberg.

    No Brasil a Constituição foi mantida, ainda que subvertida, pasme-se, pela Suprema Corte, ou STF. E foram seus membros que deram outro entendimento às cláusulas que determinam ações e atribuições concorrentes entre a União, estados e municípios. A rigor, o STF nem deveria ter aceitado recepcionar processo provocado por um partido político, em ato puramente político contra o Presidente da República, afinal, a discussão sobre atribuições estatuídas em cláusulas constitucionais é prerrogativa do Congresso Nacional. Usado que foi ou agindo em associação com partidos políticos, o STF deformou a relação federativa entre os entes dessa pseuda federação, levando a consequências inimagináveis sob o Estado de Direito: a revelação de dezenas, talvez centenas de ditadores que poderão facilmente chegar às raias comportamentais de ditadores como os de Cuba ou Coréia do Norte, determinando vida e morte aos seus súditos, ex-cidadãos. A safra tupiniquim de ditadores, apoiados por “comitês sanitários” criaram decretos absolutamente ilegais por extrapolarem seus limites, uma vez que decretos não são peças legislativas. Decretos têm a função de apenas regulamentar lei aprovada pelo Poder Legislativo. Não tem poder autóctono, ou seja, a autoridade executiva não tem o poder de um legislador, não pode criar regras autônomas. Mas foram além disso, violando os direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, em todos os sentidos. Só faltou institui o enforcamento de civis que não usam máscaras em praça pública. E se deixarmos que isso prossiga, não é de se duvidar que coisas bizarras vão acontecer. A maldade, a insensibilidade de prefeitos e governadores revelam um grande número de verdadeiros psicopatas na vida pública, algo assustador. Se podemos tirar algo de positivo desta suposta pandemia, esta é uma revelação importante, o que deverá a conduzir os cidadãos a analisar melhor em que estão votando. Quem sabe exigir exames psicotécnicos e de sanidade mental e moral dos candidatos nas eleições. Afinal, é o povo que fica em risco.

    Diante desta situação é compreensível o dilema dos agentes de segurança pública, pois as ordens das autoridades instituídas sempre foram no sentido de proteger a população e esta é a missão para qual cada agente é treinado. Aliás, reiterando, tanto as FFAA quanto as forças auxiliares de segurança pública são instituição do Povo e não dos governos. O conceito de Estado, desde a sua mais remota primariedade, nasceu pela segurança pública, instituída pela comunidade exatamente para defender a vida e a propriedade contra salteadores, como força coercitiva em nome de todos. Mas… e agora? O que fazer diante da ordem de prender um trabalhador, um empresário, um cidadão cumpridor dos seus deveres, pagador dos impostos com os quais se pagam os salários dos próprios agentes de segurança? E os abusos? Porque policiais que chegam a bater até mesmo em mulheres e pessoas de idade, usando gás de pimenta nos olhos, causando danos de toda ordem não são admoestados e até expulsos da corporação? Pergunto mais: porque os policiais graduados que têm pleno conhecimento dos direitos e deveres constitucionais aceitam cumprir ordens ilegais e muitas vezes absurdas? Além dos danos à sociedade, como vai se tratar com os danos causados aos próprios policiais, que também são membros da sociedade? Como um policial que antes invadiu um comércio entrará no mesmo, ou ainda membros de sua família quando tudo isso passar?

    Tenho por certo de que os policiais de alta patente, bem como os comandantes da Polícia Federal deveriam sim, deixar bem claro qual é o seu papel, tal como o General Heleno disse claramente ao governante petista, quando este mandou atuar contra fazendeiros na região da Raposa do Sol: “pertencemos ao Estado não a governos”, evidenciando que as Forças Armadas não poderiam ser usadas contra o próprio povo.

    Imagino que seja difícil ter uma postura corajosa diante da autoridade, mas se alguns corajosos tomarem a decisão de não atacar o povo, de reiterar seu juramento de respeitar a Constituição e a defesa intransigente da Sociedade, a serviço de sua segurança, lembrando que são agentes do Estado e não de governos, serão certamente seguidos por seus comandados. Vejam o que o governador Dória faz em São Paulo ao usar mais de 200 policiais e dezenas de viaturas para protege-lo diante da população cada vez mais enfurecida. Não duvido que chegará o momento em que dezenas de milhares de pessoas simplesmente passarão por cima de todos, mesmo com a morte de alguns, pois, na prática, já estão mortos de fome, mortos em seus projetos, em seus sonhos, e a possibilidade de uma ucranização com tons mais graves poderá ocorrer. A Polícia não pode dar guarida para as loucuras de governantes. Destruir a Polícia Militar e as forças de segurança pública no Brasil é uma das metas dos globalistas, enfraquecendo a Nação. E qual a melhor forma de fazer isso ao jogá-las contra a própria população sob o pretexto de uma suposta pandemia, não é mesmo?

    Ficam as reflexões externadas com todo respeito à corporação, mas repletas de sinceridade em nome de milhares, milhões e pessoas escandalizadas com o que está ocorrendo em todo o País. Não é possível continuar desse jeito. É preciso pôr um ponto final nisso. O Povo clama por isso. Ordem ilegal e absurda não se cumprem. Simples assim.

    Um abraço!
    Thomas Korontai

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