OS EFEITOS DANOSOS DAS ACUSAÇÕES DE VIOLÊNCIA POLICIAL MILITAR SEM A DEVIDA PROVA

Nos últimos dias, uma série de fatos envolvendo eventuais ações de violência praticadas por policiais militares têm se destacado nos meios de comunicação. Existe por parte do Quarto Poder (imprensa) matérias jornalísticas de todos os níveis e credibilidade, as que buscam apresentar a sociedade os fatos com imparcialidade, assim como algumas outras que transmitem matérias parciais e injustas.

Dentre as diversas ocorrências veiculadas nos últimos dias, especificamente envolvendo policiais militares, convém que alguns pontos sejam discutidos, sem ufanismo, e observados sob a luz da lei e da dignidade da pessoa humana.


A imprensa

A imprensa tem um papel muito importante em propagar, investigar e divulgar informações por meio de seus múltiplos meios de comunicação. Entretanto, quando as matérias são tendenciosas e sensacionalistas, sem a apuração adequada dos fatos, as consequências podem gerar efeitos negativos aos indivíduos e instituições envolvidas.

A partir do momento que o nome de um policial militar é divulgado na imprensa, antes de que uma investigação seja concluída, antes do oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público ou que sejaconsiderado culpado por sentença emitida pelo Poder Judiciário, dentro do devido processo legal, ele é considerado inocente. Esse cidadão (sim, o policial militar também é um cidadão), caso seja inocente, sofrerá com acusações de membros da comunidade, tendo seu nome exposto nos noticiários televisivos, jornais e programas de rádio, sem ao menos ter exercido o seu direito de defesa, garantido pela Constituição Federal e normas internacionais no âmbito do direito internacional público. 

O profissional terá sua imagem denegrida e a sua vida mudará quase que por completo. São inúmeros os casos em que policiais militares acusados pela imprensa precisam mudar de residência, devido a ataques de pedras e madeiras e/ou de pinturas com acusações aos muros de suas casas. Situação ainda pior ocorre com a sua família, que também sofrerá de uma maneira muito dolorosa, pois as crianças são mais sensíveis e vulneráveis a retaliações de outras, nas escolas ou na comunidade onde frequentam. Os cônjuges se envergonham e os casos de depressão, síndrome do pânico e estresse são comuns a todos. Todos esses problemas se unem aos custos financeiros que o policial militar passa a ter com as custas advocatícias.   

Os prazos das investigações são definidos por legislação federal e enquanto perdurarem os recursos, a Constituição Federal considera todos inocentes até condenação transitada em julgada. Ou seja, caso o oficial encarregado de um inquérito policial militar (ou um delegado encarregado de inquérito policial), indicie um policial militar por haver indícios de materialidade e autoria do cometimento de crime, os autos são encaminhados ao Ministério Público, cabendo ao promotor do caso analisar e decidir sobre o oferecimento, ou não, de denúncia ao juiz de competência.

O juiz assim decidirá se a denúncia será ou não aceita. Caso a denúncia seja aceita pelo magistrado, o policial militar passa a condição de réu em processo judicial e irá a julgamento em primeira instância. Convém ressaltar que compete aos promotores de justiça restituir os autos de inquérito às Corregedorias da Polícia Militar (e da Polícia Civil), quer seja para procedimentos adicionais ou para que o fato seja apurado no âmbito disciplinar. Por não ser considerada peça obrigatória, o inquérito policial pode ser dispensado pela promotoria, caso julgue ter indícios suficientes parar o oferecimento de denúncia ao poder judiciário.


Trabalho das Corregedorias PM

É comum declarações midiáticas que induzem a um pensamento coletivo da existência de corporativismo nas Corregedoria da Polícia Militar. Além de suas obrigações legais como autoridades de polícia judiciária militar, existe um intenso acompanhamento por parte dos promotores que atuam diretamente aos crimes militares afetos a atividade policial militar, sendo esse o principal e mais exímio órgão de controle externo que existe. Ademais, em muitas ocorrências policiais militares com indícios de violência ou qualquer outro tipo de crime ocorrido, a Polícia Civil também pode instaurar inquérito e proceder em investigação, de acordo com o caso.  

 Via de regra, no âmbito interno, a Corregedoria é conhecida mais pelo excesso do que pela omissão, visto a quantidade de procedimentos apuratórios instaurados, quer disciplinares ou penais. Obviamente que a Administração pode, e deve, rever seus atos sempre quando julgar ter cometido um equívoco, não apenas pelos princípios que regem a administração pública, quanto leis diversas, como o Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar. Mais recentemente, a Lei 13.869, de 05 de setembro de 2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, também objetiva restringir possíveis excessos cometidos por autoridades, as quais podem ser associados a instauração indevida de procedimentos de investigações diversos, como bem rege a lei.

Torna-se claro, portanto, que excessos e abusos que visam prejudicar um servidorbeneficiar a si mesmo ou a outrem, ou ainda atos diversos que tenham como objetivo meros caprichos e/ou satisfação pessoal, imputam crime de abuso de autoridade, os quais reforçam ainda mais o papel do administrador público em bem observar os princípios e legislações que lhe são conferidas pelos cargos que ocupam. A omissão por parte da Corregedoria atribui da mesma forma crimes militares e transgressões administrativas diversas aos profissionais com responsabilidades funcionais previstas em lei.

No Distrito Federal, existe uma próxima atuação da Promotoria Militar com a Corregedoria contribuindo para o fortalecimento das investigações realizadas. O Departamento de Controle e Correição (Corregedoria) da Polícia Militar do Distrito Federal – PMDF funciona 24h e conta com uma Ouvidoria-Geral, onde os cidadãos podem “registrar uma reclamação, denúncia, sugestão, elogio e informações de caráter geral sobre serviços da administração pública, tais como horários de funcionamento, números de telefone, endereços, entre outras”, devidamente protegidas pela Lei de Acesso à Informação.

O Núcleo de Investigação e Controle Externo da Atividade Policial (NCAP) do Ministério Público do Distrito federal e dos Territórios está diretamente subordinado ao Gabinete do Procurador-Geral de Justiça e possui atribuições para atuar em todo o Distrito Federal.

Dentre as atribuições, a principal é a de realizar diligências investigatórias e exercer o controle externo da atividade policial no Distrito Federal, de forma concorrente com as várias Promotorias de Justiça que tratam da matéria criminal, objetivando efetuar diligências investigatórias sempre que verificar-se a recusa, omissão ou retardamento injustificado do agente que investiga o fato. Assim, toda e qualquer investigação do cometimento de crimes por policiais militares são acompanhados não apenas pela Corregedoria da PM, mas também pelo Parquet competente. 


Responsabilidade dos órgãos

A ação de todas as instituições policiais e as condutas de seus efetivos devem ser sempre amparada pela Carta Magna e leis existentes. Entretanto, a existência de documentos que estabelecem os procedimentos policiais nas mais variadas ações da atividade profissional, como Procedimentos Operacionais Padrão (POP) e manuais diversos, em particular, manuais de abordagens, são fundamentais para que ante uma investigação ou julgamento, a defesa possa se embasar em regras de conduta específicas laborais. 

Todo órgão policial deve possuir regimento interno, planos estratégicos, manuais, diretrizes, normas, e POP’s que norteiem não apenas a normatização do funcionamento administrativo da instituição, mas em especial, manuais que orientarão, com base em estudos científicos, acadêmicos e técnicos, a conduta e os procedimentos a serem adotados, sempre visando a preservação da vida e da dignidade da pessoa humana.

Dentro da administração, não é aceitável um órgão público, em particular um policial, sem todo esse compêndiode normas, os quais são fundamentais para regrar e pautar as ações policiais como garantidores e promotores de direitos humanos, mantenedores da paz, ordem e segurança pública.

A Organização das Nações Unidas (ONU) quando solicitada a realizar a criação ou reestruturação de uma agência policial, os especialistas da sua Divisão Policial partem da premissa de que esse compêndio normativo deve existir antes mesmo da implementação de processos de recrutamento/seleção e emprego de policiais para o desempenho de suas atividades cotidianas. A inexistência desses tipos de documentos imputa direta e irrestrita responsabilização dos que ocupam os cargos de chefia e comando. Afinal, os policiais devem ter como base nos cursos de formação, aperfeiçoamento e de especialização, ensinamentos padronizados de condutas para o desempenho da função policial. Em casos de investigações, como os que hoje muitos “julgam e já sentenciam os agentes da lei” ao assistir as matérias da imprensa, parte-se do pressuposto de que essas normas existem e que são embasadas pela legislação em vigor, as quais servirão inclusive como parte fundamental para as investigações e eventuais julgamentos de policiais militares que tiveram condutas ilegais.

Talvez o que muito se espera dos órgãos policiais seja a adoção de princípios fundamentais que devem ser implementados por esse tipo de instituição e pouco ainda utilizado, e quando o são, ainda carecem de boas práticas. Conforme diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU), esses princípios já vêm sendo utilizados há anos em países desenvolvidos e que aos poucos vem sendo incorporados a órgãos brasileiros, sendo eles o princípio da transparência e o do accountability. É normal que fatos que envolvam supostos atos de violência policial repercutam e despertem o interesse social. Departamentos policiais desenvolvidos ao redor do mundo possuem políticas bem claras em como realizar press conferences e press release, onde possam apresentar o andamento das investigações, de forma clara, responsável e firme. Quando esses comportamentos não são realizados pelas corporações policiais, a imagem que se transmite é justamente o oposto do que se espera, o de corporativismo, de falta de transparência e da falta de accountability, ou seja, uma imagem negativa, que poderia muito bem ser contornada, com policiais capacitados para lidar com a imprensa e doutrina bem sedimentada.       

A instituição da audiência de custódia em 01 de janeiro de 2016 no Brasil determina:a apresentação de qualquer pessoa presa em flagrante, no prazo máximo de 24 horas, a um juiz para que este resolva sobre a legalidade de sua prisão e/ou sua necessidade, bem como identifique eventuais lesões ou torturas ocorridas no momento da captura ao indivíduo encarcerado, funcionando, sobretudo, como um controle ao exercício da polícia
Independente das repercussões que as “audiências de custódias” geram, ela tem previsão legal e são acompanhadas por promotores de justiça:

A previsão legal encontra-se, desde muito, em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Com efeito, o art. 7º., 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos reza:

“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”

No mesmo sentido, o art. 9º., 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York.


O instituto da “audiência de custódia” visa tutelar o direito do preso, que devem ser respeitados e garantidos pelo Estado. Dentre os principais temas em discussão, eventuais geradores de polêmicas são a reversão do ônus da prova contra os policiais condutores das ocorrências, que por vezes são imputados crimes durante as audiências. Outro ponto é a contínua praxe dos presos serem libertados antes dos policiais militares, que ficam por vezes prestando depoimentos ou realizando procedimentos burocráticos por horas. A sincronia que deve existir entre os agentes do Estado ainda não foi alcançada da melhor maneira em grande parte do Brasil. Ou talvez, as partes integrantes desse processo carecem de uma melhor compreensão do que significa esse tipo de audiência.

Se um criminoso tem os seus direitos respeitados, não pode uma sociedade composta por cidadãos dignos não respeitarem o cidadão policial, que faz jus aos direitos constitucionais, assim como todos os demais indivíduos. Logicamente que, em havendo abuso por parte de policiais militares, os fatos deverão ser devidamente investigados e julgados, com o devido rigor, tendo o princípio da presunção de inocência garantido e respeitado até sentença transitada em julgado. E a Constituição Federal, a Carta Magna máxima brasileira, garante esse direito a todos, independente se policiais militares ou não.

Espera-se por parte do Estado e corporações policiais prover a devida capacitação, treinamentos diversos e a aquisição de armamento menos-letais e letais, além de normas, manuais e todas as regulamentações adequadas para o desempenho das atividades policiais, incluindo aquelas que padronizam o correto uso dos armamentos, munições e instrumentos, com enfoque nos instrumentos com menor potencial ofensivo (menos-letais). Dos policiais militares, braço armado do Estado e legítimo detentor do uso da força, deseja-se a um trabalho pautado na lei, garantindo a manutenção da ordem e segurança pública, o restabelecimento da paz, em caso de ruptura das leis e da ordem, sempre objetivando a estabilidade e harmonia social, fazendo o uso da força de maneira racional, legal e proporcional a ofensa, se houver necessidade.

Dos cidadãos, o fiel cumprimento das leis do país e o respeito às autoridades constituídas são desejadas. Aqueles que violam a legislação e a estabilidade social, que ameaçam a integridade física e patrimonial, com ações socialmente condenáveis, devem ser detidos pelos agentes encarregados pela aplicação da lei, dentro dos procedimentos supramencionados, para que sejam levados a julgamento, dentro dos limites e direitos previstos a todos que transgridam as normas legais. Por parte da imprensa, roga-se pelo profissionalismo, imparcialidade e prudência na edição de matérias jornalísticas, tendo em mente os efeitos nefastos, e por vezes irreversíveis, na vida de muitas vidas, na maioria, inocentes.  

Aos policiais militares que cometem crimes, que atuam com excesso do uso da força ou excedam em abusos de autoridade diversos, devem ser investigados com grande rigor, pois aqueles que são investidos pelo poder do estado (policiais) justamente para garantir a aplicação da lei por todos, não pode em qualquer hipótese ser um violador dela.   

Convém ressaltar que, como todo cidadão, o policial militar é titular dos direitos humanos, dentre os quais possui, durante todo o processo, direitos inerentes a todo indivíduo, de maneira universal e indelegável.  


Referências

BRASIL. LEI nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade.Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm

DISTRITO FEDERAL. Lei de Acesso à Informação nº 4.990/2012. Disponível em http://www.fazenda.df.gov.br/aplicacoes/legislacao/legislacao/TelaSaidaDocumento.cfm?txtNumero=4990&txtAno=2012&txtTipo=5&txtParte=.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Portaria nº 799/96 do MPDFT. Disponível em  http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/conhecampdft-menu/nucleos-e-grupos/ncap


MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL E PROMOTORIAS DE JUSTIÇA MILITAR. RECOMENDAÇÃO CONJUNTA Nº 1, DE 16 DE JUNHO DE 2017. DOU de 28/06/2017 (nº 122, Seção 1, pág. 58). Disponível em Disponível em http://www.lex.com.br/legis_27456731_RECOMENDACAO_CONJUNTA_N_1_DE_16_DE_JUNHO_DE_2017.aspx


POLÍCIA MILITAR DO DISTRITO FEDERAL. Disponível em http://www.pmdf.df.gov.br/index.php/ouvidoria
Sites:https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI239559,41046-Audiencia+de+custodia+o+que+e+e+como+funciona


[1] Consultor internacional em polícia, direitos humanos e segurança pública. [email protected].
Agradecimento ao amigo, professor e major Frederico Afonso Izidoro, Chefe da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Paulo (https://linktr.ee/FredericoAfonso) e ao também amigo e major Eduardo Mendes de Almeida, da Polícia Militar do Distrito Federal, pelos aconselhamentos pontuais.

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