Tergiversando com a Fundação Abrinq

O assassinato frio de Victor Hugo Deppmann reacendeu na opinião pública brasileira a discussão sobre a redução da maioridade penal. A esquerda tupiniquim adotou imediatamente a postura do “deixa disso”, defendendo que as coisas ficassem como estão, que a culpa é da sociedade e que o forte impacto do assassinato ainda recente está turvando o julgamento das pessoas – um argumento que não foi de modo algum levantado quando essa mesma esquerda, após o massacre de Realengo, uivou e babou urgindo por uma legislação desarmamentista mais severa e implacável.

Essa semana, a causa da não-redução da maioridade penal ganhou mais uma organização: a Fundação Abrinq. Vendo nessa celeuma toda uma oportunidade de ouro, a Abrinq resolveu lançar uma nota técnica para falar porque a redução da maioridade penal é ruim. Em sua nota técnica, a Fundação Abrinq busca, apoiada em uma interpretação bastante peculiar de dados sobre a violência envolvendo crianças e adolescentes no Brasil – interpretação essa, aliás, embasada em um único autor –, mostrar que “o cometimento do ato infracional pode estar associado ao acesso a bens de consumo inacessíveis pela via legal e, em geral, mais comum em adolescentes de famílias pobres e sem expectativa de futuro ou projeto de vida. Tal motivação é alimentada pelas estratégias de marketing, pelo apelo para o consumo e pela valorização social a partir da posse de bens materiais como meio de empoderamento simbólico.”

No site da fundação, há dez motivos que resumem muito bem todo o teor da nota técnica. Por uma questão de metodologia, este texto será concentrado nesses dez motivos, que serão analisados um a um.

1. É inconstitucional a proposta de mudança do Artigo 228 da Constituição.
O Artigo 228 da Constituição estabelece que é direito do adolescente menor de 18 anos responder por seus atos mediante o cumprimento de medidas socioeducativas, sendo inimputável frente ao sistema penal convencional. De acordo com o Artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais, ao lado da estrutura do regime federativo e democrático e o exercício dos direitos políticos, compõem o que é chamado de “cláusulas pétreas”, ou seja, são os direitos e garantias protegidos por uma cláusula de intangibilidade e, por isso, não podem ser modificados sequer por Emenda Constitucional.

O artigo 228 da Constituição Federal estabelece: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” De acordo com a Abrinq, a modificação desse artigo seria inconstitucional por se tratar de garantia fundamental, que é protegido pela mesma Constituição (art. 60, § 4º, IV). No entanto, é bem sabido que, na Constituição, os direitos e garantias individuais constam no artigo 5º, e que a extrapolação dessa interpretação está muito, muito longe de ser ponto pacífico tanto em doutrina, quanto em jurisprudência. Na nota técnica, a Abrinq chega a afirmar que esse entendimento extrapolado é “[d]a própria Suprema Corte” – ainda que, para sustentar essa afirmação, citou-se um trecho de um voto de um dos ministros sobre um assunto completamente desvinculado da matéria da nota técnica. Além do mais, pode-se argüir que a natureza do artigo 228 da Constituição é muito mais contingente do que pétrea e, assim, é passível de modificação, respeitados, é claro, todos os trâmites legais.

2. Reduzir a maioridade penal é uma medida legislativa inadequada no combate à violência e à criminalidade
Além de não tratar o adolescente como o previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, o sistema carcerário no Brasil tem uma infra-estrutura extremamente precária e um déficit de mais de 262 mil vagas. Isso significa que tratar o adolescente como criminoso, contribuirá ainda mais com o inchaço populacional das cadeias brasileiras, favorecendo o aumento da violência. Além disso, a medida poderá fortalecer o crime organizado, possibilitando que adolescentes com idade entre 12 e 15 anos sejam aliciados para o cometimento de delitos.

Talvez ninguém tenha avisado à Abrinq, mas adolescentes com idade entre 12 e 15 anos JÁ SÃO aliciados, e abundantemente, para o cometimento de delitos. O caso do estado do Rio de Janeiro é emblemático, em que a maior parte dos menores infratores se envolve com crimes relacionados ao tráfico de drogas, sendo recrutados desde cedo pelas organizações criminosas. Ademais, alegar a falta de infra-estrutura do sistema prisional como motivo para a não-redução da maioridade penal é tão lógico quanto utilizar o mesmo argumento para defender o aumento da maioridade penal. Ambos os raciocínios são frágeis e, a bem da verdade, ridículos.

3. Inimputabilidade não é sinônimo de impunidade.
O mito da irresponsabilidade do adolescente, sustenta a ideia de que esse estaria mais propenso à prática de atos infracionais. O fato de o adolescente ser inimputável penalmente não o exime de ser responsabilizado com medidas socioeducativas, inclusive com a privação de liberdade por até três anos.

Defender que o adolescente é mais propenso a cometer crimes pelo simples fato de ser adolescente é absurdo, uma vez que não há qualquer nexo causal entre as duas coisas. No entanto, é correto dizer que a legislação penal aplicada a menores infratores pode servir como um mecanismo de incentivo negativo à criminalidade – deixando de punir os crimes cometidos com o rigor que se deve, cria-se uma equivalência entre a pena e a infração, fazendo com que esta perca seu real sentido do ponto de vista do menor infrator. A quantidade de jovens que possuem alto índice de reincidência em crimes é alarmante. Além disso, uma realidade sinistra subjaz a essa lógica: a perda de proporcionalidade entre crime e punição leva à relativização daqueles valores que supostamente deveriam ser defendidos quando da aplicação da pena, como a vida humana. Se um correto sistema de punição não é adotado desde o começo, existe um risco real e substancial de que não haja afastamento do menor infrator de um futuro de crimes mais hediondos.

4. O jovem já é responsabilizado pelo disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
A severidade das medidas socioeducativas é estabelecida de acordo com a gravidade do ato infracional cometido. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê seis diferentes medidas socioeducativas, sendo a mais grave delas a restritiva de liberdade. A medida de internação só deve ser aplicada quando: 1- tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; 2- por reiteração no cometimento de outras infrações graves; 3- por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. A diferença entre o disposto no ECA e no Código Penal está no modo em que se acompanha o percurso dessa pessoa em uma unidade de internação. Pelo ECA e pelo SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), o acompanhamento dos adolescente autores de atos infracionais pelo PIA (Plano Individual de Atendimento) é o que favorece sua reintegração e a diminuição drástica dos índices de reincidência.

A severidade das medidas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente não são, nem de longe, equivalentes à gravidade dos crimes cometidos. Além disso, as distorções proporcionadas pelo ECA são absurdas. Peguemos como exemplo o próprio caso de Victor Deppmann. Seu assassino cometeu o crime menos de uma semana antes de completar 18 anos. Se o crime tivesse sido cometido uma semana depois do que efetivamente ocorreu, o assassino estaria sujeito a uma pena de, no mínimo, 20 anos de reclusão (art. 157, § 3º, Código Penal). Como o crime foi cometido quando assassino ainda não tinha 18 anos de idade, sua pena máxima será de 3 anos. Nesse lapso de tempo, é altamente improvável (para não dizer impossível) que ocorra uma mudança substancial de temperamento ou caráter que magicamente transforme um potencial “menor infrator”; todavia, essa mudança é implícita na legislação ao se assumir não as reais condições psicológicas do infrator, mas uma contagem discricionária de tempo.

5. É superdimensionado o número de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país.
Da população total de adolescentes no Brasil, apenas 0,09% encontra-se em cumprimento de medidas socioeducativas. E ao considerarmos a população total do país, esse percentual é inferior a 0,01% da população.

Se podemos corretamente nos embasar na quantidade de delinqüentes de um determinado tipo para estabelecer a dureza ou leveza da legislação penal, podemos corretamente propor que os crimes de corrupção ensejem uma legislação especial muito mais branda, e que sequer envolva a privação de liberdade. Afinal de contas, a quantidade de corruptos no Brasil é irrisória quando comparada à totalidade da população brasileira. Isso serve para ilustrar como o raciocínio é delirante.

6. Como política pública, o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) ainda não foi devidamente implementado nos estados brasileiros.
Segundo dados de 2011 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em somente 5% das ações judiciais envolvendo adolescentes, existem informações sobre o PIA (Plano Individual de Atendimento), sendo que em 77% dos processos tem-se certeza de que não há tal plano. Além disso, 81% dos adolescentes autores de ato infracional não receberam acompanhamento após o cumprimento de medida socioeducativa, corroborando, por si, em muitos casos, para o cometimento do ato infracional.

Novamente, a Abrinq tenta criar um raciocínio acidental jogando todos os dados estatísticos possíveis. No entanto, é lícito pensar que, se uma política pública não foi implantada devidamente – ou seja, de acordo com seus alegados objetivos –, um dos motivos pode estar na própria política pública, e não nos poderes responsáveis por implementá-la. Possuímos diversos exemplos no Brasil de casos como esse; aliás, o País parece possuir uma tendência quase inelutável de servir de laboratório para políticas públicas ineficientes e espúrias já desde seus próprios fundamentos.

7. As taxas de reincidência no sistema de atendimento socioeducativo são muito menores que no sistema prisional
Em 2010, no sistema de atendimento da Fundação CASA (SP) a reincidência foi de 12,8%. No sistema prisional convencional para adultos, essa taxa sobe para 60%. A grande maioria dos adolescentes tem chances concretas de traçar projetos de vida distantes da criminalidade e por isso que não devem ser enviados para um sistema que diminui essas chances. Em locais onde as medidas socioeducativas previstas no ECA e no SINASE são efetivamente aplicadas, as taxas de reincidência podem ser ainda menores.

A Abrinq se vale de uma estatística defasada de um sistema estadual para, a partir daí, estabelecer uma relação necessária entre a condição de menor e o baixo índice de reincidência. No entanto, essa estratégia possui lacunas bastante graves. A primeira delas é preferir abstrações mais ou menos sustentadas por estatísticas em detrimento de uma análise escorreita de fatores sociais concretos. Além disso, a possibilidade de um alto índice de crimes não-contabilizados cometidos por jovens infratores reincidentes é completamente descartada, como se a realidade fosse restrita às estatísticas oficiais – oriundas, aliás, de um sistema que, na opinião da própria Abrinq, é ineficiente e carente de infra-estrutura.

8. Ninguém comete ou deixa de cometer crimes por causa da intensidade da punição
Prova disso é a lei de crimes hediondos que, desde que começou a valer, em 1990, não contribuiu para a diminuição desse tipo de delito. Pelo contrário: os crimes aumentaram.

Tirando o fato escandaloso de que não é fornecido um mísero dado que corrobore o que foi alegado, o raciocínio defendido aqui é uma pérola de estupidez das mais raras! Se a intensidade de punição a um crime não reduz a incidência desse crime na sociedade, mas, ao contrário, aumenta essa incidência, a solução para nossos problemas é, por conseguinte, o caminho inverso: relaxar todas as penas! Temos aí um atalho líquido e certo para o Paraíso terrestre!

9. As crianças e os adolescentes brasileiros estão expostos às violações de direitos pela família, pelo Estado e pela sociedade, contrariando o que define a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Grande parte dos adolescentes infratores sofreram algum tipo de violência antes do cometimento do primeiro ato infracional. Vale salientar que mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no território brasileiro em 2010 (Mapa da Violência 2012- Crianças e Adolescentes do Brasil); e mais de 120 mil, vítimas de maus tratos e agressões, receberam atendimento via Disque 100, entre janeiro e novembro de 2012 (Relatório Disque Direitos Humanos – Disque 100, 2012).

Absolutamente qualquer pessoa, em qualquer lugar, está exposto a – ou seja, é passível de – qualquer violação de direitos por quem quer que seja. Todavia, isso jamais constituiu um pretenso direito de delinqüir, uma vez que esse direito não existe (por mais que existam aqueles facínoras que tentam convencer-nos a todo custo do contrário). A relação aqui é de caráter determinista: se você está exposto a violações de direitos, você necessariamente vai cometer algum delito. Esse raciocínio não considera a pessoa como um indivíduo dotado de capacidade de escolha e decisão, mas como alguém determinado exclusivamente pelas circunstâncias externas.

10. As crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, gozando de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
A adolescência é uma fase da vida de grande oportunidade para aprendizagem, socialização e desenvolvimento. Atos infracionais cometidos por adolescentes, por sua vez, são ou, pelo menos, deveriam ser vistos apenas como circunstâncias de vida que podem ser transformadas e não como algo inerente ao gene ou identidade da pessoa.

As pessoas que são vítimas de crimes cometidos por menores infratores também são “sujeitos de direitos” – aliás, um termo escorregadio e suficientemente evasivo para receber qualquer definição que se queira. Se um homicídio é cometido, a pena sobre o assassino deveria, essencialmente, ser definida de acordo com o valor da vida humana, não sobre uma visão tacanha e ideologicamente deturpada da realidade. Ademais, a redução da maioridade penal não enseja a idéia de que o crime seja “algo inerente ao gene ou identidade da pessoa”, uma situação inescapável. Essa idéia não está nem marginalmente presente no debate. O que se quer é que menores infratores sejam plenamente responsabilizados por seus crimes de acordo com a natureza e a gravidade deles. É uma questão simples de justiça.

O ponto nevrálgico de toda essa defesa capenga da manutenção da maioridade penal feita pela Fundação Abrinq é que menores infratores não são responsáveis por seus atos pelo mero fato de que, diante da lei, eles sejam menores. A assunção de que o adolescente não é capaz de distinguir entre certo e errado por ser uma “pessoa em desenvolvimento” é algo profundamente estúpido. Ninguém está isento de arcar com as responsabilidades por seus atos – nem mesmo a criancinha mimada que, sem saber efetivamente que a birra é uma coisa ruim, toma umas palmadas da mãe ou é posta de castigo.

Aproveitando o ensejo, gostaria de lembrar umas palavras bem pertinentes a esse assunto que foram ditas pela saudosa Margaret Thatcher. Em 21 de maio de 1988, ao discursar perante a assembléia geral da Igreja da Escócia, a Dama de Ferro defendeu que “qualquer esquema de arranjos sociais e econômicos que não se funde na aceitação da responsabilidade individual não causará nada além de dano.” E foi além:
Todos nós somos responsáveis por nossos próprios atos. Não podemos culpar a sociedade se desobedecemos à lei. Nós simplesmente não podemos delegar o exercício da misericórdia e da generosidade aos outros. Os políticos e outros poderes seculares deveriam se esforçar em sua atuação para estimular o bem nas pessoas e combater o mal: mas eles não podem criar o primeiro nem abolir o segundo. Eles podem apenas se certificar de que as leis encorajem os melhores instintos e convicções das pessoas, instintos e convicções que, estou convencida, estão muito mais profundamente enraizados do que se supõe.
Infantilizar jovens infratores é pavimentar o caminho de formação de um grande contingente de criminosos cruéis, capazes dos atos mais inumanos justamente por não terem, desde o começo, aprendido, ainda que a ferro e fogo, que existem valores inegociáveis e que devem ser protegidos a todo custo. Já estamos sofrendo as conseqüências dessa lógica sinistra. A pergunta que fica é: até quando?

Fonte das imagens: Amigos do Ronda

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