Só o Cristianismo pode salvar a Europa

A verdade é que a Europa precisa recuperar sua grande narrativa pela qual deva viver, pela qual deva determinar o que é verdadeiro, bom e benéfico para seu povo.

O grande número de pessoas desembarcando no litoral da Europa – sejam refugiados, sejam imigrantes em busca de melhores condições financeiras – assim como o maléfico advento do Estado Islâmico e de outros grupos extremistas muçulmanos, levou o historiador Niall Ferguson a comparar, no jornal britânico The Sunday Times, o estado atual da Europa com o da época da chegada das tribos germânicas e dos hunos da Ásia Central às portas de Roma, no século V.

Certamente existem pontos em comum entre a situação do então Império Romano do Ocidente e a da Europa de hoje. Nós possuímos a mesma cultura popular decadente e superficial, em que tudo é permitido e o “pão e o circo” mantém a população anestesiada com uma saraivada de esportes, entretenimento e jogos de azar sem fim. Em comum entre as duas épocas também há o cinismo em relação à fé e aos valores que dela advém, assim como a mesma acídia ou cansaço de culturas decrépitas. Mas devemos tomar cuidado em não sermos anacrônicos e atribuir a Roma todos os nossos vícios e todas as nossas virtudes. É impressionante como alguns, ao invés de enxergarem o Cristianismo como parte da resposta para as tribulações da Europa, estão aproveitando a oportunidade para caluniar a religião em geral, sejam quais forem os fatos da história.

É particularmente incorreto tomar o livro de teor extremamente anti-clerical “Declínio e Queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, como uma referência confiável na comparação do papel do Cristianismo no Império Romano e a chegada de extremistas islâmicos em nosso meio agora. Como Larry Siedentrop bem mostrou na obra “A invenção do Indivíduo”, não houve culturas “seculares” na Antiguidade. Tudo o que havia eram religiões da família, tribo, cidade ou império, e Roma não era exceção. Desta forma, César, tal qual muitos governantes antigos, se considerava divino e, na época do surgimento do Cristianismo, foi denominado “Dominus et Deus”.

Foi isso o que causou tantos problemas para a Igreja em seus primórdios. A Igreja podia honrá-lo como imperador, mas tinha que recusar prestar-lhe o culto divino. É totalmente errado alegar que a força da Roma “secular” foi sabotada pelo advento do Cristianismo monoteísta. Também é bastante enganoso comparar o Cristianismo em sua fase inicial com o ISIS e outros grupos terroristas islâmicos. Mais importante, o Cristianismo substituiu os cultos corporativos da família, da tribo e da cidade por uma espiritualidade profundamente pessoal e pela possibilidade de se pertencer a uma comunidade universal sem classes. Como Siedentop afirma, foi o Cristianismo que  nos deu a idéia da “pessoa”, da sua liberdade e do seu valor. Se os cristãos nem sempre foram fiéis a essa visão, não há motivo para fazer falsas comparações com um sistema totalitário, tal como o Islamismo radical, onde há pouco espaço para a liberdade pessoal e quase nenhum para o exame interior da consciência. Siedentop também demonstra que o reino secular surgiu a partir de idéias cristãs, como o respeito pela consciência, e da natureza não-coercitiva do Cristianismo primordial, e não de supostos antecedentes pagãos tão amados pelos intelectuais que o odeiam.

O fato é que Roma foi salva dos piores excessos dos vândalos e dos hunos pelo papa Leão I e, como lembra o filósofo Alasdair MacIntyre, as luzes do conhecimento foram mantidas acesas na Idade Média pelos beneditinos e por outras congregações religiosas. Nós certamente precisamos de estadistas como Konrad Adenauer e Robert Schuman, que viram a necessidade de uma base moral cristã para a integração da Europa do pós-guerra. Nós precisamos também de um João Paulo II, cujo papel na libertação de países da Europa Central e do Leste de outra ideologia antagônica (comunismo) não precisa sequer ser mencionado. Certamente existem trevas crescentes e que se aproximam, mas o Cristianismo é a luz que pode brilhar sobre elas e dispersá-las. Com certeza, devemos rezar por um Bento ou Wojtyla, mas quem iria querer outro Nero ou Domiciano?

Ferguson acertadamente observa o vazio da cultura do entretenimento e dos shopping centers. Porém, ele não menciona o estado caótico da vida familiar que foi criado após ter se confundido liberdade com libertarianismo. A isso ele poderia acrescentar o simbolismo empobrecido daqueles que tentam lamentar uma atrocidade horrenda, mas sem ter uma referência ou um sistema de crenças, possuindo apenas uma compreensão opaca de qualquer coisa que seja transcendente. Como John Henry Newman descreveu nas palavras do Apóstolo: “sem esperança e sem Deus no mundo”. Por que a secular Quinta República tem de realizar o memorial em homenagem às 130 vítimas dos ataques feitos por terroristas do ISIS (o artigo foi publicado uma semana após os ataques de 13 novembro de 2015, em Paris – nota do tradutor), na gloriosa catedral de Notre-Dame, e não fazê-lo no completamente secular e sem graça Centro Pompidou? Pode isso ser um indício do papel que a fé cristã pode desempenhar em ajudar a Europa a despertar de sua letargia e se acalmar, e também a assisti-la na sua renovação espiritual e moral?

A verdade é que a Europa precisa recuperar sua grande narrativa pela qual deva viver, pela qual deva determinar o que é verdadeiro, bom e benéfico para seu povo. O marxismo e o fascismo trouxeram sofrimentos terríveis para os europeus. Agora, outra ideologia totalitária os ameaça. Um espaço plural real só pode ser garantido pelas idéias intrinsecamente cristãs da dignidade da pessoa humana, do respeito pela consciência, da igualdade de pessoas e da liberdade não apenas de crer, mas de manifestar nossas crenças em público, sem discriminação ou violência contra aqueles que não as compartilham. A autogratificação imediata e o entretenimento sem fim não irão mais contribuir para a sobrevivência da Europa contemporânea do que o fizeram para a da Roma Antiga. O que é necessário é uma ética de serviço, uma abnegação e um sacrifício em nome do bem comum. Muitos reconhecerão nisso os ensinamentos do Mestre da Galiléia, e não de um paganismo qualquer, antigo ou moderno, nem de qualquer ideologia secular ou religiosa.

Não existem coisas como a neutralidade ou o processo gratuito nessas questões. O extremistas decidiram quais são seus valores e de onde eles vêm. Possuímos nós algo para se opor a isso? As instituições, a cultura, as realizações, os valores da Europa podem ser entendidos com referências à tradição judaico-cristã, seus ensinamentos com relação ao valor da pessoa, ao bem comum e principalmente à necessidade de auto-crítica e renovação. Essa é a hora de se reapropriar dela, no seu sentido mais amplo, como a fonte de nossos valores; celebrá-la e oferecê-la a todos os de boa vontade como uma base para trabalharmos juntos por uma Europa aberta, mas unida. Alguém possui outras alternativas viáveis?

Michael James Nazir-Ali é um bispo anglicano nascido no Paquistão e naturalizado inglês.
Artigo foi publicado originalmente na revista Catholic Herald.

Tradução: Alexandre Cegalla.

Fonte: Mídia Sem Máscara.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.