O Brasil perdeu a graça

Entre todos os xingamentos disponíveis na língua portuguesa, um era absolutamente proibido em casa: desgraçado. Até hoje tenho medo de falar ou escrever essa palavra. Chamar alguém de desgraçado, na minha família, era pior do que xingar a mãe ou mandar àquela parte.

Eis que chega o triste momento de usar a maldita expressão – e para aplicá-la não a uma pessoa específica, mas ao meu próprio país. Digo isso porque os acontecimentos da última década conduzem a uma certeza: o Brasil deu as costas à graça. Não foi Deus quem nos abandonou; nós é que optamos por deixá-Lo. Hoje eu afirmo, sem medo de errar, que o Brasil não tem a graça. Poderá recuperá-la, mas hoje não tem.

A graça é um dos conceitos mais sutis que podemos encontrar no idioma. Uma das graças da graça consiste exatamente em escapar das definições. Eu diria que ela se parece com um acordo espontâneo e unificador entre a beleza, a verdade e a justiça. Louis Lavelle vem em nosso socorro para dizer numa de suas crônicas filosóficas: “A graça é uma contradição apaziguada. É a fusão de dois termos que parecem se excluir; a facilidade do difícil e a espera do inesperado. É perfeito repouso e perfeito domínio de si, liberdade e contenção ao mesmo tempo. Nela, a escolha e a necessidade coincidem”.

O Brasil não tem graça porque se tornou o império da imposição e da irrelevância. Um exemplo está na ridícula proposta de “importar” 6 mil médicos cubanos. Trotsky dizia que o comunismo transformaria todo lixeiro em um Goethe. Aconteceu bem o contrário: escritores foram transformados em lixeiros (vide Amor e Lixo, de Ivan Klíma). Cuba seguiu a lição: em vez de transformar escravos em doutores, transformou doutores em escravos. A ilha-prisão tem uma das piores medicinas do mundo – e que se apresenta como a melhor. Não há graça nenhuma.

O Brasil não tem graça quando intelectuais escrevem artigos usando a expressão “amontoado de células” para se referir a um nascituro humano. Goebbels usaria a mesma definição perante uma criança judia.

O Brasil não tem graça quando uma filósofa diz, alto e bom som, “Odeio a classe média!”, simplesmente porque esse extrato da população não se curva sempre às exigências do Estado petista.

Mas um acontecimento aparentemente banal me fez acreditar que o Brasil ainda pode recuperar a graça perdida. Antes de escrever esta crônica, eu estava lendo um artigo sobre Teresa do Menino Jesus, quando uma pequena flor caiu-me nas mãos. Ofereço-a você, leitor. Assim deve ser uma crônica: começa com um xingamento, termina com uma flor. E é de graça.

Crônica publicada nos jornais Gazeta do Povo e Jornal de Londrina.

Paulo Briguet é jornalista.

Fonte: Mídia sem Máscara.

Fonte do desenho: Graça no país das maravilhas

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