O então ministro da justiça, Alexandre de Moraes, afirmou em audiência sobre segurança pública na câmara dos deputados: “é um desperdício destruir isso[ as armas ]. Você destrói e abre licitação para comprar fuzis. A falta de lógica chega quase a burrice, só no rio de janeiro foram apreendidos 190 fuzis nos 6 primeiros meses deste ano( referindo-se a 2016, quando fez esse discurso)”. E, em 22 de dezembro de 2016, o Presidente Michel Temer assinou o Decreto 8.938, formulado pelo Alexandre de Moraes enquanto ministro da justiça, que Diz: “As armas apreendidas serão encaminhadas pelo juiz competente ao comando do exército, no prazo máximo de 48 horas, para destruição ou doação aos órgãos de segurança pública ou às forças armadas.” Isso tem causado grande euforia entre policiais e fãs de militaria, pela possibilidade de poderem usar e ver em ação armas exóticas, mais modernas e até mesmo mais potentes que a usadas pelas polícias brasileiras, quando em outrora essas armas eram meramente destruídas pelo Exército após o devido processo legal.
Para poder visualizar essa situação é preciso, primeiro, entender a origem desse armamento, para além do já amplamente conhecido contrabando através de nossas fronteiras com Paraguai e Bolívia, atravessando o país até chegar nas favelas do rio de janeiro. Ainda na década de 80, quando as facções criminosas do rio de janeiro se expandiram para o controle de comunidades além dos muros do presídio de ilha grande, os criminosos cariocas iniciaram uma corrida armamentista para proteger os pontos de venda de drogas de quadrilhas rivais no vácuo do Estado, pois o governador Brizola havia proibido a polícia de patrulhar essas comunidades, incentivados pelo crescente e lucrativo comércio da cocaína. Essas facções aproveitaram as ligações para aquisição de drogas com grupos guerrilheiros comunistas andinos, como sendeiro luminoso e FARC que monopolizavam a produção de cocaína como financiamento de seus projetos revolucionários, de modo a adquirir armas de guerra cada vez mais capazes e que estavam cada vez mais disponíveis nessa época, devido a redução dos ideais marxistas de tomada do poder pela força, para mero objetivo de proteger a produção das drogas e dos cartéis que as contrabandeavam.
Outra fonte eram as armas desviadas ou roubadas das forças armadas e policiais de nossos vizinhos, Paraguai, Bolívia, Peru, Argentina, Colômbia e Venezuela. A partir da década de 90 a demanda por fuzis aumentou muito entre as facções do rio de janeiro e atraiu a atenção do mercado global do tráfico de armas, passando a ser contrabandeadas para a cidade de lugares tão distantes como Polônia, ex-Iugoslávia ou China, por exemplo, entrando no país até mesmo por portos e aeroportos.
Em 2015 foram apreendidos pela polícia 279 fuzis no Rio de Janeiro, 142 em São Paulo, 31 no Espírito Santo e 26 em Minas Gerais. Em 2016 foram apreendidos 371 fuzis apenas no rio de janeiro, um número realmente impressionante e, aparentemente, seria um grande reforço para as polícias cariocas, assim como outras pelo Brasil que, embora não enfrente conflito com o tráfico de drogas no nível visto no rio, tem enfrentado uma epidemia de assaltos a bancos e transportadoras de valores, conhecidos como “novo cangaço”. Dos 371 fuzis apreendidos no rio de janeiro em 2016, 130 eram da “família AR15/M16”, 103 da “família Kalashnikov”, 59 da família FAL, 20 da família “AR10”, 11 Ruger, 7 G3, além de 41 modelos diversos como SIG Sauer, Steyr… Digo “Famílias”, pois cada tipo de armamento pode ter dezenas de modelos diferentes, produzidos em países diferentes, com peças, mecanismos e até calibres diversos.
O Automatic kalashnikov, “AK”, por exemplo, tem 19 modelos principais, em 5 calibres diferentes, fabricados por mais de 29 países com as mais diversas versões locais, gerando uma quantidade praticamente incalculável de variantes. Denominar todos do tipo como “AK47” é um modo genérico, já que 20% dos fuzis desse tipo no mundo são da variante chinesa Type 56, um exemplo claro disso é a guerra do Vietnã, onde sempre nos vêm à mente a imagem dos vietcongs com fuzis AK47, embora na verdade a maioria dos fuzis encontrados pelos americanos eram o Type 56 chinês e não os AK47 oriundos da União Soviética.
A “família AR15/M16” também é bastante diversa, sendo fabricados em modelos e modos de produção diferentes por cerca de 10 grandes empresas e uma variedade incontável de outras empresas menores nos EUA, além de fábricas no exterior, como a Norinco na China com o modelo CQ e a Taurus no Brasil com a carabina T4 mais recentemente. Outro fato que aumenta as diferenças entre modelos da família AR é possuir dois tipos de calibres extremamente similares, .223Remington e 5.56x45mmNATO, mas que não são intercambiáveis em todos os modelos da família.
Os fuzis da “família FAL” também tem algumas variações entre seus modelos, sendo a diferença mais evidente entre o fuzil de coronha fixa( FAL) e o de coronha rebatível ( Para-FAL), onde as mudanças não fica apenas no tipo de coronha, mas em todo o mecanismo de absorção do recuo assim como a tampa da caixa da culatra. Mas as diferenças são ainda maiores quando comparado os modelos da versão “métrica”( como os usados pelo exército brasileiro) e a versão “polegadas” ( como os que foram usados pelo reino unido e Austrália, por exemplo) que possuem todos os reténs diferentes, não sendo intercambiáveis nem os carregadores, embora essas discrepâncias sejam mais difíceis de identificar olhando rapidamente, são bastante significativas.
Embora pareça legal ter armas exóticas, muitas vezes mais modernas e capazes que as utilizadas pelas polícias, existem vários motivos pelos quais forças regulares utilizam armamentos padronizados, ao invés de uma grande variedade de modelos:
- Facilita a formação e o treinamento contínuo da tropa, onde o policial pode atuar em qualquer unidade com o armamento disponível de imediato, sem a necessidade de receber treinamento adicional que seria necessário no caso de haver grande multiplicidade de armamentos diferentes a cada unidade onde tiver que atuar.
- O uso contínuo do mesmo armamento gera um adestramento maior( memória muscular), que em combate, aumentam a probabilidade de sucesso, assim como minimiza a ocorrência de acidentes e incidentes.
- O treinamento e adestramento específicos a um modelo padrão também proporciona maior habilidade em manutenção e a correta regulagem do armamento, reduzindo a incidência de panes em ação, diminui o desgaste do armamento e até mesmo a “baixa” prematura do armamento pelo operador por desconhecer o problema apresentado.
- O armamento padronizado, de apenas uma origem, facilita a reposição de peças desgastadas e partes danificadas, reduzindo o custo de aquisição devido a compra em escala, além de agilizar a burocracia necessária em licitações e permissões dos diversos órgãos responsáveis pelo trâmite, propiciando ainda a manutenção de um grande estoque, pois há demanda contínua para todas as unidades igualmente, reduzindo a necessidade da realização de muitos processos de licitações diferentes.
- Uma variedade maior de armamentos, calibres, peças de reposição e acessórios, compromete severamente a manutenção de estoques adequados, a logística da corporação e das unidades, necessitando mais tempo, mais burocracia e mais pessoal administrativo, para identificar a necessidade de cada unidade que utilize um determinado modelo, depois esperar reunir certa quantidade da peça para cada modelo e país de origem, para só então realizar os trâmites necessários para cada aquisição, com cada empresa fornecedora, sendo que muitos desses países sequer tem acordos comerciais no ramo bélico com o Brasil, além de alguns modelos nem ao menos serem mais fabricados, tendo ainda que aguardar a chegada para só então distribuir para a unidade onde se faz necessária e poder reparar o problema, enquanto o armamento permanece todo esse tempo “baixado”.
- A logística interna da corporação, entre as diversas unidades, também é severamente comprometida quando existe grande multiplicidade de armas e munições, enquanto um equipamento padronizado permite uma gestão mais simples e um realocamento dos recursos disponíveis para onde houver maior necessidade rapidamente.
Para análise prática do problema podemos observar a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que atualmente emprega 7 modelos diferentes de fuzis e carabinas: IMBEL FAL, IMBEL PARA-FAL, IMBEL MD3, IMBEL MD2, IMBEL MD97, Colt M16A2 Commando e Armalite AR10A4.
Essas armas possuem 3 tipos básicos de mecanismos diferentes: 4 modelos possuem ferrolho basculante(FAL/Para-FAL/MD3/MD2), com diferenças entre eles; enquanto 2 modelos possuem ferrolho rotativo por ação direta dos gazes(M16A2 Commando/AR10A4); e 1 modelo com ferrolho rotativo por ação de pistão curto(MD97).
A PMERJ emprega dois calibres diferentes em seus fuzis e carabinas: quatro modelos usam o calibre 7.62x51mm (FAL/Para-FAL/MD3/AR10A4), embora os carregadores dos modelos IMBEL e armalite não sejam compatíveis, e 3 modelos usam o calibre 5.56x45mm (MD2/MD97/M16A2 Commando).
Dos fuzis/carabinas utilizados pela PM do rio, 5 são produzidos no Brasil pelo mesmo fabricante( IMBEL) e amplamente utilizados pelas forças armadas e/ou polícias brasileiras (FAL/Para-FAL/MD3/MD2/MD97), 2 são de origem norte americana(M16A2 commando/AR10A4) e, apesar de ser fabricado nos EUA, o M16A2 commando também é usado pelo corpo de fuzileiros navais brasileiro. Mesmo a maioria dos fuzis/carabinas da PMERJ sendo de origem nacional, oriundos da mesma empresa e amplamente empregados em diversas forças militares e policiais no país, ainda assim a polícia dos rio tem grande parte desse armamento fora de uso( “baixados”) nas reservas de armamentos dos batalhões por falta de peças de reposição e muitos dos que estão em uso frequentemente estão em elevado nível de desgaste, com diversos danos em peças secundárias ( que não fazem parte do mecanismo de disparo) como guarda mão, coronha, alça/massa de mira e zarelho, por exemplo.
Grande parte da tropa não recebe treinamento adequado para todos os armamentos em uso e como estão espalhados sem um padrão nas diversas unidades, acabam não sendo usados por todos os policiais com frequência, inclusive muitos policiais jamais fizeram uso de todos, o que afeta o adestramento individual para empregar e manutenir adequadamente o armamento usado, resultando em maior probabilidade de panes em combate ou disparos acidentais no manuseio rotineiro, colocando em risco a vida do próprio policial como de outra pessoas a volta, além de causar um maior desgaste do equipamento e “baixas” prematuras por desconhecimento do defeito apresentado.
Mesmo a PM do rio só empregando dois tipos de munições, 5.56x45mm e 7.62x51mm, e 3 padrões de carregadores, sendo dois deles fabricados no Brasil, o trâmite para aquisição é extremamente complexo e demorado, por vezes ficando unidades com número mínimo de munições de um tipo, enquanto pode estar sobrando de outro do qual tenha menos armamentos. A burocracia necessária para transferência e redistribuição de munições entre as unidades operacionais também é extremamente complexa, e exige grande demanda de pessoal administrativo.
O exemplo da Polícia Militar do Rio de Janeiro permite visualizar a complexabilidade e fatores de riscos em empregar uma grande variedade de modelos de armamentos em forças regulares, se tratando de armas apreendidas a situação fica ainda pior, pois geralmente são armas já usadas, em diferentes estados de conservação e desgaste, muitas das quais montadas e modificadas por pessoal não especializado e sem qualquer padrão técnico, verdadeiras gambiarras, para as quais sequer existem instrutores com conhecimento ou prática no uso e manutenção, nem mesmo ferramentas adequadas ou munições a disposição no país, havendo inclusive modelos que nem se conhece a origem ou modelo.
Esses fatores além de reduzirem a eficiência do operador pelo uso de variados armamentos, criam circunstâncias que certamente colocarão em risco a vida de um número muito maior de policiais, seja em ações rotineiras de municiar e desmuniciar o armamento ou em situações de combate, expondo também a liberdade do policial, já que o mesmo responde judicialmente em caso de acidentes com seu armamento ou mesmo por incidentes que resulte em “efeito colateral”, por uso de armamento inadequado ou por adestramento limitado no uso de tal armamento, comprometendo de modo flagrante a prestação de um serviço de excelência para a sociedade, a qual juraram “servir e proteger”.
Fica evidenciado, pela própria fala do Alexandre de Moraes, que a opção de usar armamento apreendido não se baseia em decisões técnicas e estudos aprofundados junto aos operadores na linha de frente, mas apenas na decisão política de economizar investimentos em segurança pública, com a desculpa da crise financeira que o país se encontra, mas sabemos que na verdade é apenas resultado do levante de combate a corrupção que tem inviabilizado as tradicionais maracutaias em licitações, onde historicamente não vence o melhor baseado em análises técnicas, mas sim quem paga a maior propina.
A segurança pública no Brasil, especialmente no rio de janeiro, vive uma situação de falência completa e péssima administração, jogar mais uma “bomba” nas mãos dos nossos policiais, ao invés de lhes dar equipamentos adequados para execução do seu serviço, que requer precisão e segurança para o operador e para sociedade, seria um erro com efeitos devastadores.
Russk Maik.
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Fonte: DebatePolicial.
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